Celso Lungaretti é paulistano, neto de italianos, e trabalhou durante 34 anos como jornalista profissional, atuando no grupo encabeçado pelo jornal "O Estado S. Paulo", na Imprensa do Palácio dos Bandeirantes, em revistas de variedades e agências de comunicação empresarial. É autor do livro "Náufrago da Utopia" (Geração Editorial, 2005). Participou da resistência à ditadura militar, como militante estudantil e membro da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). Foi preso e duramente torturado. Falsamente acusado de delator, ficou de fora da lista de guerrilheiros a serem soltos e exilados, trocados pelo embaixador alemão (seqüestrado em 70), e passou muitos anos sendo injustiçado por companheiros da esquerda. Só conseguiu provar sua inocência nisso no final de 2004, a partir da revelação de um relatório secreto militar e da intervenção em seu favor do historiador Jacob Gorender.
Hoje com 60 anos, considera-se em plena forma para atuar na profissão, mas, conforme foi se tornando mais notória sua condição de articulista de esquerda, passou a não encontrar mais nenhuma porta aberta na mídia. Para continuar cumprindo, "na contramão do sistema", seu papel de formador de opinião, mantém dois blogues, colabora em outros espaços virtuais e tem seus artigos divulgados por uma ampla rede de amigos. É também um dos principais defensores do escritor e perseguido político Cesare Battisti, em favor de quem já escreveu mais de 200 artigos.
Nesta entrevista, concedida em exclusivo ao blog “Quem tem medo do Lula?”, de onde é colaborador e co-editor, Lungaretti diz que a Lei de Anistia foi “irrestrita no mau sentido. O termo oportunista cai melhor”. E devia ter sido revista em 1985: “Agora, que os ainda vivos são septuagenários ou mais idosos ainda, há vários problemas. Considero mais importante assegurarmos que o papel histórico dessa canalha fique bem conhecido”, disse.
Conhecimento este que é prejudicado pela forma como a mídia atua no assunto. Uma atuação definida por ele como “assustadora” e somente comparável ao que se viu nos “EUA no auge do macarthismo”.
Lungaretti deixa a indagação: “Se os crimes não só deixarem de ser punidos, como forem também acobertados, que mensagem legaremos aos que virão depois de nós? A de que não há risco em se derrubar um presidente legítimo, rasgar a Constituição, cometer arbitrariedades de todo tipo, torturar, estuprar, assassinar e dar sumiço em restos mortais?”
E diz que torce para que a presidenta Dilma Rousseff “reabra a questão”. Pois, “indignidade tem limite”.
Por Ana Helena Tavares
1- Carlos Lamarca, de quem você foi companheiro na VPR, o acusou de delator. Sua inocência quanto a isso só foi provada em 2004. Queria que você começasse falando sobre essa história.
Celso Lungaretti: Os fatos concretos são:
1) entre outubro e dezembro de 1969, o Lamarca, o Fujimori, o velho Lavecchia, o Massafumi e eu tentamos preparar uma área em Jacupiranga (SP) para receber os companheiros que deveriam fazer treinamento guerrilheiro;
2) com a desativação dessa área por inadequação aos nossos propósitos, eu pedi para voltar ao trabalho urbano e o Massafumi se desligou da VPR;
3) ambos pudemos sair de lá exatamente porque o que nós conhecíamos deixara de ser sigiloso e não sabíamos qual o local onde se faria a nova tentativa de implantar a escola de guerrilha;
4) preso em abril de 1970, sofrendo torturas muitos intensas e detendo informações importantes, revelei a localização da área abandonada, para ganhar tempo;
5) a área ativa só viria a ser descoberta pela repressão dois dias depois, em função de novas prisões (conforme consta de um relatório secreto do II Exército);
6) quando o Massafumi se rendeu ao Deops/SP, tudo isso já havia acontecido;
7) mesmo assim, um documento da VPR atirou tal responsabilidade sobre nós dois, estimulando preconceitos que, inclusive, tiveram muito a ver com o suicídio do Massafumi.
O que está por trás dos fatos é meio difícil de apurar-se hoje em dia. O Ivan Seixas, por exemplo, disse-me que a situação era tão caótica e havia tanta coisa ruim acontecendo que a VPR poderia, simplesmente, estar mal informada.
No entanto, é fato também que quem revelou a localização da chamada Área 2 ao DOI-Codi tinha posição hierárquica superior à minha e, se isto se tornasse notório, seria bem mais constrangedor para a VPR a delação ter partido dessa pessoa que de mim -- eu era jovem, pouco conhecido e não tinha tradição pessoal nem familiar na esquerda.
Enfim, fiquei com a impressão de que a "razão de Estado" prevaleceu sobre o compromisso revolucionário com a verdade.
2- Você guarda algum tipo de ódio dos militares que o torturaram?
Celso Lungaretti: Só os odiaria se fossem iguais a mim. Aos inferiores, eu desprezo. Eram uma escória truculenta e burra, nada mais.
3- Em sua opinião, qual punição ainda cabe a eles?
Celso Lungaretti: Deveriam ter respondido por seus crimes no momento da redemocratização do País. Agora, que os ainda vivos são septuagenários ou mais idosos ainda, há vários problemas:
1) a Justiça brasileira faculta infinitas manobras protelatórias a réus que têm bons advogados, então acabariam todos morrendo antes de qualquer sentença condenatória chegar à fase de execução;
2) eles alegariam, com razão, desigualdade de tratamento, por terem sido apenas os executantes de uma política adotada pelo Estado brasileiro nos anos de chumbo. Alguns companheiros se contentariam em ver sentenciado um Brilhante Ustra ou um Curió. Eu considero muito piores os mandantes, os altos comandantes militares, os signatários do AI-5. Foi gente como o Delfim Netto que tirou a focinheira dos mastins e os açulou contra nós.
3) a propaganda da extrema-direita se serviria disso para torná-los objetos de compaixão, o que não merecem ser. Seria tolice criarmos condições para o martiriológio desses carrascos.
Então, eu considero mais importante assegurarmos que o papel histórico dessa canalha fique bem conhecido, do que corrermos atrás de punições tardias e que acabarão não ocorrendo.
4- A Lei de Anistia foi interpretada pelo STF como abrangente aos torturadores. É caso de revisão ou de reinterpretação?
Celso Lungaretti: Não há hipótese de uma anistia ser promulgada durante uma ditadura, beneficiando os esbirros dessa ditadura. Isso não foi anistia, mas sim um habeas corpus preventivo. Então, ela tem é de ser revogada e substituída por outra, gerada num Estado de Direito.
Ocorre que o Tarso e o Vannuchi desviaram o foco da questão, do Executivo e do Legislativo para o Judiciário. Fizeram isto quando perderam a batalha dentro do Ministério e por saberem que o Congresso também não mexeria nesse vespeiro.
Mas, o obstáculo não foi contornado: a Advocacia Geral da União, cada vez que requisitada pela Justiça, opina que a anistia de 1979 incluiu os torturadores, mesmo (absurdo!) entendimento do STF.
Então, melhor do que esse atalho que não levou a lugar nenhum, teria sido continuarmos na estrada principal: para posicionar corretamente essa questão, o Estado brasileiro precisa, primeiramente, revogar a anistia que os déspotas concederam a seus agentes. Todo o resto vem depois.
5- Fala-se muito num “pacto de conciliação” e que quebrá-lo seria prejudicial. Como você vê isso?
Celso Lungaretti: Não vejo. Inexistiu conciliação. O que houve foi uma chantagem da ditadura: "se vocês querem que soltemos os presos políticos e deixemos voltar os exilados, terão de engolir o perdão de todos os nossos crimes".
É compreensível que os companheiros tenham aceitado essa barganha em 1979, afinal havia muita gente de nosso lado sofrendo, aqui e lá fora.
O incompreensível é não a terem denunciado em 1985. Por conta dessa omissão, o problema continua sem verdadeira solução, um quarto de século depois.
6- A anistia foi mesmo “ampla, geral e irrestrita”?
Celso Lungaretti: Foi "ampla" e "geral" porque os militares não conseguiram deixar de fora os resistentes que pegaram em armas, como pretendiam; pelo menos esta parada nós vencemos.
E "irrestrita" no mau sentido, porque cobriu práticas que não podem ser anistiadas, quais sejam aquelas cuja responsabilidade é dos agentes do Estado. O termo "oportunista" cai melhor...
7- O que você acha da expressão “revanchismo”?
Celso Lungaretti: Seria pertinente se aqui tivesse havido uma guerra entre forças equivalentes, não uma tentativa desesperada que alguns milhares de cidadãos idealistas e despreparados empreendemos, contra os efetivos e recursos imensamente superiores dos tiranos que haviam usurpado o poder e recorriam às práticas mais bestiais para nele se manterem.
O problema é e sempre foi de Justiça. Para quem sofreu as torturas na carne ou teve assassinados seus entes queridos sem receber sequer um corpo para enterrar, é muito difícil aceitar a impunidade ostensiva desses criminosos.
8- Qual a importância de que a sociedade brasileira tenha direito ao esclarecimento dos crimes da ditadura?
Celso Lungaretti: Se os crimes não só deixarem de ser punidos, como forem também acobertados, que mensagem legaremos aos que virão depois de nós? A de que não há risco em se derrubar um presidente legítimo, rasgar a Constituição, cometer arbitrariedades de todo tipo, torturar, estuprar, assassinar e dar sumiço em restos mortais?
Já que se tornou muito difícil fazer com que essas bestas-feras cumpram penas de prisão ou ressarçam o Estado pelo que este teve de pagar em indenizações a suas vítimas, que pelo menos sejam expostas ao opróbrio dos brasileiros. Que morram cientes de que os pósteros conhecerão detalhadamente suas práticas infames, encarando-as com horror e repulsa.
9- Você diria que hoje o Brasil é um país democrático?
Celso Lungaretti: Formalmente, sim. Mas vivemos uma nova realidade, na qual o poder econômico assumiu tal preponderância que as instâncias políticas foram esvaziadas, tornando-se impotentes para decidir o fundamental; e na qual a indústria cultural, manipulando cientificamente as consciências, desfigura profundamente a representação popular.
10- Você trabalhou durante alguns anos no Estadão. Hoje, como você vê a atuação da mídia nesse processo?
Celso Lungaretti: Assustadora. A única comparação que me ocorre é com os EUA no auge do macarthismo.
Nós, os que contestamos as versões e as visões do agrado dos donos da mídia, não conseguimos exercer plenamente o direito de resposta, não temos espaço para apresentar o "outro lado" e quase nunca somos citados. Viramos não-pessoas, não porque os colegas jornalistas o queiram, mas por causa das restrições impostas pelos altos escalões.
11- Qual sua expectativa com relação ao papel da Dilma, uma ex-torturada, nessa questão?
Celso Lungaretti: Torço para que reabra a discussão, pois a última palavra não pode ser aquela dada pelo STF. Indignidade tem limite.
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