O LONGO CAMINHO DA MEMÓRIA, DA VERDADE E DA JUSTIÇA NA ARGENTINA
Por: Francisco Luque - Correspondente da Carta Maior em Buenos Aires
No tema 'direitos humanos', a Argentina tem sido um exemplo para a América Latina. O país tem sido a vanguarda na aplicação de justiça aos responsáveis pelos crimes de lesa humanidade em períodos de exceção, criando jurisprudência em nível internacional. Ao contrário de outros países que também viveram ditaduras, a Argentina gestou uma doutrina jurídica e uma política de Estado que permitiu gerar um corpus para a realização de julgamentos e a aplicação de penas aos responsáveis por estes crimes.
Existe um plano televisivo que, para a maioria dos argentinos, é o ato fundador da transição democrática no país: no dia 9 de dezembro de 1985, o juiz León Carlos Arslanián lê com voz firme diante das câmeras de TV a sentença que responsabiliza os comandantes em chefe das forças armadas da elaboração e execução de um plano sistemático de aniquilamento, no denominado “Processo de Reorganização Nacional” (1976-1983), que terminou com a vida de milhares de argentinos. Foi o histórico “Julgamento das Juntas”.
A última ditadura militar foi o processo mais criminoso de que se tem conhecimento na Argentina. Uma página sombria em sua história, onde dezenas de milhares de pessoas foram detidas, torturadas, assassinados, desaparecidas ou forçadas ao exílio, como parte do plano desenhado para aniquilar a dissidência. Além dos 30 mil desaparecidos registrados pelos organismos de direitos humanos, deve-se somar um número importante de crianças, estimado entre 250 e 500, que foram adotadas ilegalmente logo depois de seu nascimento nos centros clandestinos de detenção.
No tema “direitos humanos”, a Argentina tem sido um exemplo para a América Latina. O país tem sido a vanguarda na aplicação de justiça aos responsáveis pelos crimes de lesa humanidade em períodos de exceção, o que permitiu criar jurisprudência em nível internacional. Ao contrário de outros países que também viveram o peso de regimes autoritários, como é o caso do Chile, que realizou uma transição pactuada com o ditador Augusto Pinochet, ou do Uruguai, onde em 2009 foi realizado um plebiscito que reafirmou a “lei da caducidade”, que consagrava a impunidade dos delitos de violação dos direitos humanos, a Argentina, com avanços e retrocessos, gestou uma doutrina jurídica e uma política de Estado que permitiu gerar um corpus para a realização de julgamentos e a aplicação de penas aos responsáveis por estes crimes.
O presidente da Corte Suprema, Ricardo Lorenzetii sustenta que os julgamentos de crimes de lesa humanidade são parte do contrato social dos argentinos. “Este processo social teve como reflexo um processo institucional progressivo e múltiplo. Quando a tarefa foi edificar uma democracia que nunca mais saísse de nossas mãos, o que exigiu enfrentar o passado de violações dos direitos humanos como principal desafio”. Para o sociólogo Ricardo Foster, este é um momento em que a sociedade argentina pode reparar algo do dano irreparável infringido a outros no passado.
Um pouco de história. Ao assumir, o presidente Raul Alfonsin (1983-1986), assinou os decretos de criação da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas para investigar as violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura. Aquela investigação será publicada no livro “Nunca Mais”. Um tempo depois, e cedendo às pressões dos altos comandos militares, através do levante de Campo Mayo por um grupo de militares “cara pintada”, o presidente Alfonsín promulgou as leis de Obediência Devida e Ponto Final, que anulavam as ações penais contra as patentes intermediárias que participaram da execução de atos de terrorismo de Estado. Posteriormente, o presidente Carlos Menen (1989-1999) concede o indulto presidencial aos chefes da ditadura, Jorge Videla e Eduardo Massera, condenados ambos à cadeia perpétua em 1985.
No dia 15 de abril de 1998, a lei 24.952 anulou as leis do Ponto Final e da Obediência Devida que, posteriormente, em 2 de setembro de 2003, foram declaradas “insanavelmente nulas”. No dia 14 de junho de 2005, a Corte de Justiça declarou a inconstitucionalidade destas leis, além de estabelecer a validade da lei de nulidade. Primeiro Néstor e depois Cristina Kirchner retomam e dão decidido apoio à atuação judicial contra a impunidade. A vontade de ambos será reconstruir a memória histórica deste período obscuro para o que tomam uma série de decisões políticas fundamentais que reabrem o caminho da justiça e permitem o conhecimento da verdade.
Em 2004, Néstor Kirchner abre as portas do centro de detenção da Escola Superior de Mecânica da Armada (ESMA) e transforma o lugar em um centro de reflexão para a memória e a verdade, olhando para as novas gerações. Além disso, em um ato pleno de simbolismo, ordena retirar da parede os quadros dos generais Jorge Rafael Videla e Roberto Bignone, ex-presidentes de fato e antigos diretores do Colégio Militar. Neste ambiente contra a impunidade são reativados os julgamentos de militares e agentes de segurança do Estado durante a ditadura.
Esse florescimento da justiça, sustenta o juiz Lorenzetti, foi também o resultado de dinâmicas sociais e políticas mais complexas, mudanças nos estados de opinião, relações de força ou prioridades contraditórias que, a cada momento, foram estabelecidas por presidentes, legisladores e juízes diante de disjuntivas de difícil resolução, uma vez que foi aceito que o esquecimento e a impunidade não seriam opções válidas ou aceitáveis.
Como sustentou o juiz espanhol Baltasar Garzón, a Argentina é um país que sofreu a mais cruel das ditaduras e que iniciou um caminho de reparação e construção institucional que deu contribuições fundamentais ao direito internacional em matéria de direitos humanos.
“Este é tempo de divisas, tempo de gente cortada. É tempo de meio silêncio, de boca gelada e murmúrio, palavra indireta, aviso na esquina.”
Carlos Drumond de Andrade
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