DEPOIMENTO DE GILSE COSENZA - MAIS UMA VITIMA DA DITADURA MILITAR
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GILSE COSENZA |
Fomos colocadas na solitária, onde ficamos por três meses, sendo tiradas apenas para sermos interrogadas sob tortura. Era choque elétrico, pau de arara, espancamento, telefone, tortura sexual. Eles usavam e abusavam. Só nos interrogavam totalmente nuas, juntando a dor da tortura física à humilhação da tortura sexual. Eles aproveitavam para manusear o corpo da gente, apagar ponta de cigarro nos seios. No meu caso, quando perceberam que nem a tortura física nem a tortura sexual me faziam falar, me entregaram para uns policiais que me levaram, à noite, de olhos vendados, para um posto policial afastado, no meio de uma estrada. Lá, eu fui torturada das sete da noite até o amanhecer, sem parar. Pau de arara até não conseguir respirar, choque elétrico, espancamento, manuseio sexual. Eles tinham um cassetete cheio de pontinhos que usavam para espancar os pés e as nádegas enquanto a gente estava naquela posição, de cabeça para baixo. Quando eu já estava muito arrebentada, um torturador me tirou do pau de arara. Eu não me aguentava em pé e caí no chão. Nesse momento, nessa situação, eu fui estuprada. Eu estava um trapo. Não parava em pé, e fui estuprada assim pelo sargento Leo, da Polícia Militar. De madrugada, eu percebi que o sol estava nascendo e pensei: se eu aguentar até o sol nascer, vão começar a passar carros e vai ser a minha salvação. E realmente aconteceu isso. Voltei para a solitária muito machucada. A carcereira viu que eu estava muito mal e chamou a médica da penitenciária. Eu nunca mais vou esquecer que, na hora que a médica me viu jogada lá, ela disse: ‘Poxa, menina, não podia ter inventado isso outro dia, não? Hoje é domingo e eu estava de saída com meus fi lhos para o sítio’. Depois disso, eles passavam noites inteiras me descrevendo o que iam fazer com a minha menina de quatro meses. ‘Você é muito marruda, mas vamos ver se vai continuar assim quando ela chegar Estamos cansados de trabalhar com adulto, já estudamos todas as reações, mas nunca trabalhamos com uma criança de quatro meses. Vamos colocá-la numa banheirinha de gelo e você vai ficar algemada marcando num relógio quanto tempo ela leva para virar um picolé. Mas não pense que vamos matá-la assim fácil, não. Vocês vão contribuir para o progresso da ciência: vamos estudar as reações, ver qual vai ser a reação dela no pau de arara, com quatro meses. E quanto ao choque elétrico, vamos experimentar colocando os eletrodos no ouvido: será que os miolos dela vão derreter ou vão torrar? Não vamos matá-la, vamos quebrar todos os ossinhos, acabar com o cérebro dela, transformá-la num monstrinho. Não vamos matar você também não. Vamos entregar o monstrinho para você para saber que foi você a culpada por ela ter se transformado nisso’. Depois disso, me jogavam na solitária. Eu quase enlouqueci. Um dia, eles me levaram para uma sala, me algemaram numa cadeira e, na mesa que estava na minha frente, tinha uma banheirinha de plástico de dar banho em criança, cheia de pedras de gelo. Havia o cavalete de pau de arara, a máquina do choque, e tinha uma mamadeira com leite em cima da mesa e um relógio na frente. Eles disseram: ‘Pegamos sua menina,ela já vai chegar e vamos ver se você é comunista marruda mesmo’. Me deixaram lá, olhando para os instrumentos de tortura, e, de vez em quando, passava um torturador falando: ‘Ela já está chegando’. E repetia algumas das coisas que iam fazer com ela. O tempo foi passando e eles repetindo que a menina estava chegando. Isso durou horas e horas. Depois de um tempo, eu percebi que tinham passado muitas horas e que era blefe.
GILSE COSENZA, ex-militante da Ação Popular (AP), era recém formada em Serviço Social quando foi presa em 17 de junho de 1969, em Belo Horizonte (MG). Hoje, vive na mesma cidade, onde é assistente social aposentada.
“Este é tempo de divisas, tempo de gente cortada. É tempo de meio silêncio, de boca gelada e murmúrio, palavra indireta, aviso na esquina.”
Carlos Drumond de Andrade
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