Se nesse depoimento houver mentira, é a mentira mais
próxima e vizinha da pior verdade que existe. Aquela verdade à qual nos
recusamos, mas que ainda assim avança, sem respeitar o nosso horror.
Urariano
Mota,
Cláudio Guerra (esquerda) é entrevistado
pelo jornalista Alberto Dines (direita)
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Confesso
que fui ver para não acreditar no que veria. Fui ver a entrevista de Alberto
Dines com o ex-policial Cláudio Guerra com maus olhos, com um espírito prévio
para apontar as falhas, as mentiras no depoimento do matador de presos
políticos. Mas esse preconceito, ou seja, a visão antes da experiência, longe
estava de uma pose. Não. É que a inteligência, a sensibilidade da gente
possui uma defesa contra o horror. Temos sempre uma região de conforto que
recusa e se recusa à zona mais escura, aquela em que nos dizemos: “até aqui vai
a dor – daqui não passarás”.
Então,
de imediato, naquela atitude anterior à visão, na entrevista pude ver um
Alberto Dines crédulo, como se ele não fosse um repórter experimentado. Aparecia
nele uma sombra de assentimento, como é típico de qualquer repórter de
televisão para um entrevistado, “sim, sim, sim”, a concordar com o queixo.
Parecia
nele não haver uma suspensão para a dúvida. E enquanto assim via, eu me
afirmava: o matador arrependido age contra a Comissão da Verdade, na medida em
que insinua “não procurem mais corpos desses militantes, porque foram queimados”.
E mais me dizia: como o entrevistado Cláudio Guerra pode relacionar certos
cadáveres a nomes? Qual a certeza de suas lembranças para os corpos de
subversivos que ele fez sumir?
Ah,
essas perguntas Dines não faz, eu me dizia, ele é um crédulo. Como é possível
um cara ter, como o entrevistado fala, duas contas em um banco, numa, de nome
falso, para receber o dinheiro extra por assassinatos, noutra, real, somente
para a remuneração de funcionário? O repórter perdeu o ritmo, continuo a me
dizer, pois existe uma tensão dramática em qualquer gênero, até mesmo em um
trabalho jornalístico. E mais grave, o repórter pula a denúncia do terror. Ele
salta o essencial, vou me dizendo. Então chego ao minuto e tempo 32.48, até o
ponto 38.16 do vídeo da entrevista. E da voz do policial escuto, contra o que
eu não queria ver e escutar, quando ele conta o estado em que encontrou pessoas
de militantes, antes de jogá-las ao forno de uma usina:
“As
mordidas (em Ana Rosa) eram mordidas humanas. Ela estava muito machucada… Eu
creio que foi asfixia. O corpo dela sangrava, o corpo sangrando. Estava
estourada por dentro. O marido, Wilson Silva, estava sem as unhas da mão, todo
arrebentado”. E mais, como um acúmulo de evidências, neste preciso ponto de
verdade, que pela percepção sabemos da memória de relatos dos necrotérios na
ditadura:
“Todos
os cadáveres que eu recebi eram seminus. Era um tipo assim, mais parecido com
um calção que uma bermuda, não é? Porque as pessoas eram torturadas nuas, pau
de arara era nu. As torturas ali de choque, nos órgãos genitais, muitos foram
até castrados. Eram seminus, todos eles… O caso de Capistrano ele não
estava todo esquartejado não.Ele estava com o braço direito decepado. Tinham
arrancado o braço dele, de Capistrano. Os outros, na maioria eram fraturas
expostas ao longo do corpo, com os ossos aparecendo, entendeu? A maioria. Na
maioria era assim. Olha, são cenas que eu, é, pra mim me deixam fora, muito
abalado narrar isso aqui. Pra mim é a pior época da luta de que eu participei
foi essa aí”.
Nesse
preciso instante, há uma verossimilhança terrível no que o Matador de Presos
Políticos Cláudio Guerra fala. Ele bate com tudo que pesquisamos e contra a
nossa vontade aprendemos. E concluo, enfim: se nesse depoimento houver mentira,
é a mentira mais próxima e vizinha da pior verdade que existe. Aquela verdade à
qual nos recusamos, mas que ainda assim avança, sem respeitar o nosso horror.
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