O
Ministério Público Federal (MPF) denunciou à Justiça Federal mais um militar
responsável por crimes contra a humanidade durante a guerrilha do Araguaia, na
década de 70, no sul do Pará. O major da reserva Lício Augusto Maciel, que
usava na época o codinome de doutor Asdrúbal, foi denunciado pelo sequestro de
Divino Ferreira de Sousa, o Nunes, capturado e ilegalmente detido pelo Exército
durante a repressão à guerrilha em 1973.
De
acordo com a denúncia do MPF, Divino foi emboscado no dia 14 de outubro de 1973
pelos militares chefiados por Lício, quando estava ao lado de André Grabois (o
Zé Carlos), João Gualberto Calatroni (o Zebão) e Antônio Alfredo de Lima (o
Alfredo). Ao avistarem os militantes, Lício e seus homens abriram fogo. Os
outros três guerrilheiros foram executados e Divino foi sequestrado e levado
com vida para a base militar da Casa Azul, em Marabá. Apesar de ferido, Divino
foi interrogado e submetido a grave sofrimento físico em razão da natureza da
detenção. Após isso, não mais foi visto.
Entre
as testemunhas do sequestro de Divino está o militar José Vargas Jimenez, que
escreveu um livro sobre a repressão à guerrilha e depois confirmou todas as
informações em depoimento oficial às autoridades brasileiras. Ele disse que
Divino foi capturado com vida e levado para as dependências do Exército. No
mesmo sentido é o testemunho de Manoel Leal Lima, o Vanu, que servia de guia para
o grupo de militares durante a emboscada.
Vanu
afirmou que os militantes políticos encontrados em 14 de outubro de 1973 não
representavam ameaça pois estavam abatendo porcos para a alimentação no momento
da captura. Eles poderiam ter sido rendidos, mas foram mortos, com exceção de
Divino, levado vivo para a cidade de Marabá. Ainda segundo Vanu, Divino
Ferreira de Souza, após interrogado, nunca mais foi visto.
Tanto
Vanu, quanto Jimenez e outras testemunhas relataram os sepultamentos dos três
militantes do PCdoB mortos na ocasião da prisão de Divino. Jimenez contou que
um dos corpos teve o dedo cortado por um soldado, que descarnou o dedo e passou
a usar o osso do guerrilheiro como amuleto. Sobre a morte de Divino, não há
relatos consistentes. O que se sabe é que ele foi capturado, interrogado e
depois desapareceu.
Para
o MPF a responsabilização penal de Lício Augusto Maciel decorre da participação
inequívoca dele nos crimes relatados na denúncia, o que inclusive foi por ele
reconhecido em depoimento prestado na Justiça Federal do Rio de Janeiro, em
2010. O sequestro de Divino aconteceu durante a denominada Operação Marajoara,
última fase dos combates entre Exército e militantes.
“Nessa
etapa houve o deliberado e definitivo abandono do sistema normativo vigente,
pois decidiu-se claramente pela adoção sistemática de medidas ilegais e
violentas, promovendo-se então o sequestro ou a execução sumária dos
militantes. Não há notícias de sequer um militante que, privado da liberdade
pelas Forças Armadas durante a Operação Marajoara, tenha sido encontrado livre
posteriormente”, relata a denúncia do MPF.
“Especialmente
nos casos de sequestro, além da perpetração de sevícias às vítimas para obter
informação sobre o paradeiro dos demais dissidentes (tortura), seguiram-se atos
de ocultação das condutas anteriores visando assegurar a impunidade e manter o
sigilo sobre as violações a direitos humanos. Ou seja, ao sequestro clandestino
segue a negativa estatal de sua própria ocorrência”, relatam os procuradores da
República.
A
denúncia contra Lício é assinada pelos procuradores da República Tiago Modesto
Rabelo, André Casagrande Raupp, Melina Alves Tostes e Luana Vargas Macedo, de
Marabá, Ubiratan Cazetta e Felício Pontes Jr., de Belém, Ivan Cláudio Marx, de
Uruguaiana, Andrey Borges de Mendonça, de Santos e Sergio Gardenghi Suiama e
Marlon Alberto Weichert, de São Paulo.
Crimes
contra a humanidade
Esta
é a segunda ação penal movida pelo MPF contra militares envolvidos em crimes
contra a humanidade e graves violações a direitos humanos durante a repressão
violenta à guerrilha do Araguaia. O primeiro denunciado foi Sebastião Curió. A
denúncia não foi aceita pela primeira instância – a Justiça Federal de Marabá –
mas o MPF está recorrendo para ver o acusado no banco dos réus. Para o MPF, os
crimes de sequestro praticados durante o regime militar não estão prescritos ou
cobertos pelo manto da anistia por serem crimes permanentes, de acordo com
decisões do próprio Supremo Tribunal Federal brasileiro e também da Corte
Interamericana de Direitos Humanos.
O
STF decidiu, em dois casos de extradição de militares ligados a ditaduras
latino-americanas, que a extradição deveria acontecer por se tratarem de casos
de desaparecimento forçado, que o direito internacional considera como
violações graves de direitos humanos sobre as quais não se aplica anistia ou
nenhuma disposição análoga, seja prescrição, irretroatividade da lei penal,
coisa julgada ou qualquer excludente similar.
De
acordo com a sentença que condenou o Brasil pelos crimes do Araguaia, a Corte
Interamericana ordenou que “o Estado deve conduzir eficazmente, perante a
jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso
[violações de graves violações aos direitos humanos durante a Guerrilha do
Araguaia] a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes
responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que
a lei preveja”.
Para
o MPF, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos deve ser obedecida
a não ser que o país declare inconstitucional sua adesão ao sistema
interamericano de direitos humanos. Para recusar a autoridade da Corte
Interamericana, o Brasil teria que abdicar do sistema como um todo. “Decisão
esta que esbarraria no óbice da vedação do retrocesso em matéria de direitos
humanos fundamentais, além de importar claramente em violação do princípio da
proibição da tutela deficiente dos direitos humanos”, explicam os procuradores.
Para
o MPF, também não se pode falar em ofensa à soberania nacional. “O respeito à
autoridade das decisões da Corte IDH, ressalte-se, não afasta ou sequer
fragiliza a soberania do Estado-parte, haja visto que é a própria Constituição
que contempla a criação de um Tribunal Internacional de Direitos Humanos”,
dizem os procuradores.
O
MPF permanece investigando os crimes ocorridos durante a ditadura militar e não
estão descartadas novas ações penais. A ação contra Lício Augusto Maciel
tramita perante a 2ª Vara da Justiça Federal de Marabá.
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