Pela primeira vez, vítimas da ditadura são ouvidas por um juiz para reconstituir os últimos passos de militante desaparecido
Por Thais Barreto
Ainda é um segredo de Estado o destino do marinheiro pernambucano Edgar Aquino Duarte. Ele integrava a Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil quando participou da revolta dos marinheiros, ocorrida no calor do golpe de 1964, e foi expulso da corporação. Obrigado a se exilar - primeiro no México e, depois, em Cuba - só voltou ao Brasil em 1968. Para se proteger, adotou outro nome e outra função. Entre 1971 e 1973, foi sequestrado e permaneceu sob o domínio dos órgãos de segurança. Foi visto por diversos presos políticos da época e passou pelo DOI-Codi e o Dops em São Paulo.
Depois, desapareceu.
As testemunhas de seu desaparecimento foram ouvidas entre os dias 9 e 11 de dezembro pelo juiz federal Hélio Egydio de Matos Nogueira e pelo procurador regional da República Andrey Borges de Mendonça na 9ª Vara da Justiça Federal de São Paulo.
Quarenta anos depois, torturados e torturadores foram colocadas frente a frente, em um momento inédito, depondo em juízo em uma ação com instrução penal. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), o sequestro é um crime continuado até encontrar a pessoa ou seus restos mortais. Para os procuradores, portanto, a lei da Anistia, que impede a punição dos agentes da ditadura, não se aplica ao caso de Edgar Duarte, já que o seu sequestro se prolonga até hoje.
No depoimento, as testemunhas o ex-marinheiro pela última vez fizeram à Justiça uma reconstituição de suas memórias.
Do outro lado da mesa estavam os delegados de polícia Carlos Alberto Augusto, conhecido por “Carlinhos Metralha”, e Alcides Singillo. Quanto ao terceiro réu, que comandava o DOI-Codi, um dos principais centros de repressão do país, o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, não compareceu. Ele estava representado por um advogado que não se pronunciou nem inquirindo as testemunhas nem quando foi procurado pela imprensa. No mesmo dia, foi decretada a revelia do Ustra.
O primeiro depoimento foi de José Damião Trindade, que viu Edgar no DOI-Codi, onde funciona até hoje a 36ª delegacia, na Rua Tutóia. Damião foi capturado no dia 17 de fevereiro de 1972. Levou choques e foi espancado e colocado durante dias em uma solitária. “Vi o rosto dele quando fui retirado para o banho de sol. No corredor em frente à cela quem passava via. Nos cumprimentamos com aceno de cabeça. Até abril de 1972, sou testemunha, Edgar Aquino Duarte estava no DOI-Codi”, relatou Damião Trindade.
“Eles deixavam muito claro que tinham poder sobre sua vida”, descreveu Artur Scavone, preso no dia 24 de fevereiro de 1972. Levou cinco tiros no momento da prisão e, ao chegar no Doi-Codi, mesmo ferido, foi torturado. Artur viu Edgar Aquino Duarte no Doi-Codi, onde dividiram a mesma cela. “Ele tinha preocupação com a situação que vivia [não sabia se ia ser libertado ou morto]. Ustra viu Edgar preso. Ele estava conosco por volta de julho, depois foi levado da nossa cela”, lembrou.
Preso no dia 29 de janeiro de 1972 e conduzido imediatamente para a rua Tutóia, Pedro Rocha Filho foi despido e pendurado no pau de arara, como era comum a quem chegasse ao DOI-Codi. Interrompido seu suplício, já era noite quando entrou em uma cela com duas pessoas, entre elas Aquino Duarte. Pedro escutou seu verdadeiro nome, mas Edgar afirmou que estava ali registrado com o nome falso, Ivan Marques Lemos, e que fora preso pela equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Falou do envolvimento com Alselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, que havia conhecido quando estava na Marinha. Na época, Edgar não sabia que se tratava de um agente infiltrado.
Edgar trabalhava na Bolsa de Valores quando reencontrou Cabo Anselmo na rua e o levou para casa. Anselmo dizia ter acabado de chegar de Cuba e procurava um lugar para ficar. A prisão de Edgar foi concomitante à de Anselmo. “Para que o Cabo Anselmo continuasse infiltrado, só mesmo mantendo o Edgar sequestrado. Quando se descobriu [a farsa], ele [Edgar Aquino Duarte] se tornou indesejado”, contou Sergio Suiama, procurador-federal e um dos autores da ação do MPF. Carlinhos Metralha admitiu, após a sessão na Justiça Federal, que prendeu apenas Anselmo. Uma testemunha desmente essa versão.
Cárcere e torturas. No Dops, Ivan Seixas escutou o comentário de Edgar Aquino Duarte ao ver Carlinhos Metralha passar em frente à cela: “Esse foi um dos que me prenderam”.
Edgar descreveu para Seixas a angústia de permanecer no cárcere. “Eu sei que morrerei, não tem fim esse negócio, não sei o que estou fazendo aqui”.
César Teles também escutou de Edgar que não acreditava que iriam soltá-lo. “No Doi-Codi mais de uma vez Edgar perguntou a Ustra sua situação e nunca teve resposta”, testemunhou Pedro Rocha sobre o sofrimento do companheiro de cela.
Lenira Machado colocou em detalhes no seu depoimento o contexto da sua prisão. Detalhou a tortura promovida pelo agente do DOI-Codi Dirceu Gravina, que se auto denominava Jesus Cristo ou JC, também citado em outra ação do MPF.
“Me colocaram no pau de arara, começaram a dar choque. JC sentou em um dos cavaletes. Enquanto davam choque, ele jogava um punhado de sal no meu corpo e jogava água na minha boca” relatou Lenira durante a audiência.
Defensor de Edgar à época, o advogado Virgílio Lopes Eney relatou ter visto o cliente “uma ou duas vezes” quando estava em liberdade, mas não conseguiu encontrá-lo nem no DOI-Codi nem no Dops, onde conversou com Alcides Singillo, que negou verbalmente que Edgar se encontrava na delegacia. Virgílio conseguiu um despacho assinado por Singillo com o nome de Edgar. “Na época tentei impetrar o habeas corpus, o Supremo se recusou a receber por se tratar de crime de segurança pública”, explicou.
Última testemunha a depor, Maria Amélia de Almeida Teles, torturada por Ustra, não se deixou ser interrompida quando provocada por uma mulher que acompanhava Carlinhos Metralha. Numa tentativa de avacalhar os depoimentos, a mulher, de aparentes 35 anos, começou a lixar a unha e riu enquanto Amélia descrevia a violência sexual vivida no DOI-Codi. “Eles arrancaram minha roupa, levei choque elétrico na vagina, no umbigo, no ânus. A palmatória arrancava minha pele. Me colocaram no pau de arara. Acordei com [Lourival] Gaeta em cima de mim tentando me estuprar”, relatou Maria Amélia. Já transferida para o Dops, viu diversas vezes um homem encapuzado passando acompanhado pelos agentes. No dia que tiraram o capuz, Maria Amélia viu um rosto: era Edgar Aquino Duarte. Ele se aproximou da cela e lhe fez um desabafo: “Vão me matar”.
No dia 22 de junho, ela e outros presos foram transferidos para o presídio do Hipódromo e nunca mais Edgar foi visto. Os depoimentos reconstituíram em juízo as violências praticadas por agentes do Estado durante a ditadura.
O procurador da República Andrey Borges de Mendonça, coautor da ação do MPF, disse que esse é um momento importante para as investigações, pois as vítimas nunca tinham sido ouvidas. O desaparecimento de Edgar Aquino Duarte está entre os 164 casos de investigação da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” presidida pelo deputado Adriano Diogo. Ele acompanhou os depoimentos das testemunhas. A ação penal do MPF n.º 0011580-69.2012.403.6181 corre desde 17 de outubro de 2012. A segunda etapa dos depoimentos acontecerá nos dia 27 de março, 1º e 2 de abril de 2014. Contará com o testemunho da defesa dos réus, entre eles o vice-presidente da República Michel Temer e o ex-prefeito de São Paulo Paulo Maluf.
Heróis nacionais? Na sessão, Alcides Singillo alegou não fazer parte de prisões e buscas. Disse que apenas abria inquéritos para o “combate à subversão”. Mas Amélia Teles afirmou, em seu depoimento, que Singillo a ameaçou no período que esteve no Dops: “Vou te entregar para a equipe do Fleury”.
Carlos Alberto Augusto ganhou o apelido de Carlinhos Metralha porque costumava passar diante das celas com uma metralhadora pendurada, insultando ou ameaçando os presos políticos. Trabalhou ao lado de Fleury e ainda mantém a mesma postura. Para tentar disfarçar o próprio nervosismo, fazia caras e bocas diante dos depoentes, cutucava os advogados - dele e dos outros réus – cochichava, sorria e demonstrava desdém.
Não se sabe como será a defesa dos acusados, mas o advogado de Metralha insistiu em uma pergunta aos ex-presos políticos: “O senhor [ou a senhora] viu se o ‘Dr. Carlos’ teve alguma participação na prisão do Edgar?”.
Carlinhos Metralha ocupa atualmente a função de delegado em Itatiba, interior de São Paulo.
O MPF produziu uma ação para afastá-lo do cargo, mas a Justiça negou o pedido. Em uma eventual condenação neste processo, ele pode ser afastado. Metralha ainda vai depor diante do juiz, mas assumiu, quando foi entrevistado, que prendeu Cabo Anselmo. Disse, no entanto, jamais ter visto Aquino Duarte. Ele reiterou que tem orgulho de tudo que fez, pois “livrou o Brasil do comunismo”. Defende que “o DOPS era uma família” e considera “um absurdo” estar hoje no banco dos réus. Para Metralha, Cabo Anselmo, Fleury e Ustra são heróis nacionais.
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