Por: Paulo Nogueira no DCM
Uma
figura feminina aparece na minha mente sempre que leio a respeito do papel da
Globo no golpe de 1964.
Não
a conhecia até recentemente, mas me apaixonei assim que a vi.
Ela
estava num documentário sobre o golpe a que assisti no ano passado.
É
um trabalho rústico, uma câmara e depoimentos. E é sublime como retrato de uma
época sinistra.
O
documentário foi gravado em 1971, no Chile. Os autores foram dois cineastas
americanos – Haskell Wexler e Saul Landau — que estavam no Chile para
entrevistar Allende.
Eles
souberam que havia um grupo de exilados brasileiros com histórias de tortura e
decidiram registrá-las com sua câmara. O grupo tinha sido trocado pelo
embaixador da Suíça no Brasil.
Surgiria,
como que por acaso, “Brasil, um relato da tortura”, um pequeno épico do cinema
que não se curva aos poderosos. Eram talentosos os americanos. Haskell
posteriormente receberia dois Oscars por trabalhos na área de fotografia de
grandes produções de Hollywood.
É
uma mulher que me fisga no filme, uma jovem médica que narra as barbaridades
que ela e os companheiros sofreram nas mãos dos agentes da ditadura.
Ela
é bonita, articulada, e pesquisando vejo que fascinou também os documentaristas
americanos.
Ela
tinha 25 anos na ocasião, e riu ao lembrar as torturas, que narrou
meticulosamente. Parecia invencível diante das violências.
“Fui
colocada nua numa sala com cerca de 15 homens”, disse ela. “Fui espancada e
esbofeteada.”
Seu
rosto bonito ficou, contou ela, completamente deformado, conforme queriam os
algozes.
Durante
a sessão puseram num volume ensurdecedor “música de macumba”, e ela lembrou que
os torturadores pareciam “excitados, felizes” como se estivessem numa festa.
A
certa altura, a agarraram pelos seios e puseram uma tesoura em seu mamilo.
Pressionavam e soltavam, e ameaçavam extirpá-lo. Também diziam que iriam
matá-la.
Uma
das forças do vídeo é que os entrevistados mostram como eram as torturas, como
o pau de arara. São reproduções realistas e assustadoras.
Comecei
a ver, por sugestão de minha filha Camila, e não consegui parar em quase 1 hora
de conteúdo extraordinário. Fiquei perturbado como há muito tempo não ficava.
E
depois quis saber mais das pessoas. Particularmente dela: passados mais de quarenta
anos, que estaria fazendo?
E
então vem a parte triste. Como escreveu Machado de Assis em Dom Casmurro quando
as coisas degringolam, pare aqui quem não quer ver história triste.
Maria
Auxiliadora Lara Barcelos, este o nome daquela guerreira que comoveu aos
cineastas e a mim. Dora ou Dodora, como a chamavam.
Ela
não viveu para ver o fim do horror militar.
Pouco
tempo depois, como Ana Karenina, se jogou sob as rodas de um trem. Ela estava
com problemas psiquiátricos derivados da selvageria a que foi submetida, e
tinha acabado de se consultar com seu médico.
Morava,
então, em Berlim.
Dois
anos depois de feito o documentário, Pinochet tomou o poder no Chile, e Dora
teve que partir de novo.
Primeiro
foi para a Bélgica, e depois para a Alemanha Ocidental. Era brilhante: passou
em primeiro lugar entre 600 estrangeiros e conseguiu aprovação para
complementar seus estudos de medicina na Universidade de Berlim.
Fiquei
triste, quase enlutado, ao saber do que ocorreu com ela. Já imaginava
entrevistá-la, e especulava sobre como ela estaria hoje. Conservaria vestígios
da beleza sobranceira e altiva do passado?
Num
voo mental, penso que se ela tivesse nascido na Escandinávia, hoje seria uma
avó, cheia de histórias para contar aos netinhos. Fantasio-a de bicicleta em Copenhague,
feliz entre pessoas que são felizes porque aquela é uma sociedade como
prescreveu Rousseau: sem extremos de opulência e de miséria.
Mas
ela nasceu e cresceu na terra da iniquidade, que combateu com coragem
assombrosa e idealismo inexpugnável. Não há em sua fala vestígio de remorso por
ter caminhado o caminho que escolheu.
Em
Laura, o filme clássico de Preminger, o detetive se apaixona pela foto de uma
mulher assassinada. Como que me apaixonei por Dora ao vê-la no documentário.
Fico
tolamente satisfeito quando minha filha Camila me conta que, pesquisando,
descobriu que Dilma prestara tributo àquela brasileira indomável.
Em
fevereiro de 2010, quando o PT confirmou a candidatura de Dilma para a
presidência da república, Dilma disse em seu discurso: “Não posso deixar de ter
uma lembrança especial para aqueles que não mais estão conosco. Para aqueles
que caíram pelos nossos ideais. Eles fazem parte de minha história. Mais que
isso, eles fazem parte da história do Brasil.”
Dilma
citou três pessoas. Uma delas era Dodora. “Dodora, você está aqui no meu
coração.”
E
no meu também.
E
é nela que penso quando reflito sobre o papel da Globo no golpe.
E
nela projeto todos os outros tombados.
A
Globo ficará eternamente impune – rica e impune — pelos assassinatos que
indiretamente promoveu ao abrir as portas para a ditadura?
Nem
um miserável pedido de desculpas será endereçado à memória de Dodora?
Ninguém
a protegeu em vida, que ela ceifou ao se atirar sob as rodas de um trem nas
remotas terras germânicas.
E
a opulência impeninente da Globo em seu cinquentenário mostra que também na
morte Dodora continua desprotegida.
Roberto
Marinho virou bilionário com o mundo que ele se empenhou tanto por moldar, o
das botas e das metralhadoras assassinas, e Dodora só conseguiu escapar de tudo
sob as rodas de um trem.
Tinha
31 anos.
Sobre o Autor
O jornalista Paulo Nogueira é
fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do
Mundo.