quinta-feira, 21 de julho de 2011

Racine, amigo dos artistas - Portal Vermelho

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Racine, amigo dos artistas

Urariano Mota *


Lembro de um domingo de carnaval em que Racine, médico famoso e violonista do Recife, juntou a melhor e maior gangue de violões para confraternizar com Luís Nassif. Fomos todos recebidos como príncipes na casa de Racine, um apartamento amplo, que para a minha ignorância eram três: o de baixo, o de cima e o mais alto, com direito a piscina. Lá, no piso de cima, entre uísques muitos, que eu vi os outros beberem, que eu vi até onde pude vê-los, aconteceram coisas inacreditáveis. Entre as muitas, estava Geraldo Azevedo, acompanhado por sua linda filha, calado e em silêncio por mais de duas horas, esperando a vez de tocar. Eu bebia e perguntava à minha mulher: “aquele é mesmo Geraldo Azevedo?” Ela me respondia: “Fale baixo. Você não pode beber, que inconveniência”. Mas era mesmo Geraldo, podemos ver, que na sua vez deu um show imperdível, gratuito, de pura camaradagem, a cantar a Menina do Lido, Dia Branco, Quando fevereiro chegar...

Em outro lugar estava Samir Abou Hana, apresentador de rádio e televisão, louco para cantar Nelson Gonçalves, o que lhe foi afinal concedido, porque a casa é democrática. Mas o mais espantoso não era Samir cantando Nelson à sua maneira de cantar, rouco e sentido. O espantoso era um senhor que, a seu lado, ficava a lhe soprar os versos, enquanto Samir esticava com voz de baixo, sem extensão, coitado, mas esticava a frase, à espera do que o ponto de teatro lhe soprasse. Quem seria o bom homem que cobria os vagos de memória de Samir? Nada mais, nada menos que Doutor Agrimar, dono de laboratórios de imagens em Pernambuco.

Em outro ponto, em outro lugar estava Lalão, a andar impaciente pela grande sala, com um cigarro no bico, com seu físico nada suave de atleta estivador do cais. Eu lhe perguntei, pois eu estava muito inconveniente: “Vai tocar, Lalão?”. E ele: “Se me chamarem, eu vou”. E seus dedos de tarado por cordas agitavam-se. Então fui ao dono da casa e, com a maior das inconveniências, interrompendo-o no solo de violão que ele fazia como poucos, eu lhe murmurei que Lalão queria tocar. “Ah, certo”, ele respondeu. E, com superior educação, acabou o seu número e cedeu o próprio lugar para o estivador mais sublime do Recife. Para quê? Vocês conhecem a lenda do Uirapuru? Se conhecem, podem imaginar: Lalão, quando toca, toda a constelação de violonistas silencia a ouvi-lo. Na verdade, ouvi-los: porque ele dá um concerto de violonistas, sola e se acompanha ao mesmo tempo com uma velocidade e profusão de acordes tamanhos, que só sabemos existir um só violão porque estamos vendo-o. Ou vendo-os.

No fim, lá pro fim da noite, apareceram Marco César e Henrique Annes, e na sala de poucos resistentes ficaram a dialogar entre cordas, como se fossem meninos grandes com seus brinquedos favoritos, ou como adultos em comunhão a se confidenciarem histórias que antes não sabíamos. Que espetáculo! Henrique, o maior nome do violão hoje em Pernambuco, num brevíssimo intervalo olhava para um lado, para o outro, para saber se a sua mulher havia saído. Confirmado, bebia rápido, à caubói, uma dose larga de uísque. E com a garganta assim temperada, falava em voz alta: “Eu não posso beber, por causa do remédio”. Isso com a cara mais séria e pura de menino do Brasil. Quem não virava cúmplice?

No fim da noite, a voltar para casa ainda em estado de êxtase, a repassar todas as minhas inconveniências, senti que a maior eu não fizera. Por que Racine é tão amado pelos músicos do Recife? Por que ele é a ponte para excelentes músicos da cidade? Será que é pela recepção, pela mesa farta e sem medidas, que ele tem um prazer imenso em dividir? Talvez, mas só um pouquinho. Ou melhor, não. Ali estavam músicos que não precisavam estar, tocando de graça, quando poderiam ficar em descanso em casa até o próximo show. Então por quê? Seria porque Racine, otorrino de renome, atende a preço módico ou a preço nenhum os artistas, porque é do ramo e sabe que arte e grana nunca rimam nem se encontram? Talvez, mas só um pouquinho. Ou será, de modo mais simples, porque os artistas do Recife sabem que têm nele um igual, um amigo, para todas as horas, grandes e pequenas, boas e tristes ? Penso que é isso. Penso, mas não tenho a certeza.

Estou até hoje sem saber. Como me arrependo de não ter sido mais inconveniente. Na próxima vez, juro que ele não me escapa.
* Autor de “Os Corações Futuristas” e de “Soledad no Recife”, que recria os últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, executada por Fleury com o auxílio do traidor.

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Carlos Drumond de Andrade