sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Memória, Verdade e Justiça

Por: Sérgio Muylaert*

A bem dizer o tema da memória e da verdade é solução. No essencial, nascente do direito clássico e da tradição dos povos, as conquistas sociais devem pavimentar o futuro civilizado, no aperfeiçoamento dos direitos humanos e o clamor contra as formas de violência por todos os lados ressurge em meio a necessidade de uma justiça de transição. A construção da memória não é algo póstumo e a efetivação deste projeto é o indisponível direito que se consubstancia com a verdade dos fatos.

Por outra, o resgate da memória, da verdade e da justiça, engloba função de coleta de dados e monitoramento ordenado, para contribuir na formação de bancos de dados, a serem disponibilizados, a partir de um mapeamento e do reconhecimento dos fatos e sua efetiva divulgação. Existe uma extensa realidade ocultada e intocável. Diante dela não parece razoável dizer-se o contrário e a Comissão da Memória e da Verdade terá, portanto, a resposta adequada ao conteúdo deste projeto de lei n° 7.376/2010.

Pautado no III PNDH o ministério dos Direitos Humanos instaura o Comitê de gestão da rede dos observatórios, com este objetivo segundo Portaria n° 1.516, de 5 de agosto de 2011. Neste sentido as audiências públicas da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados exercem papel indissociável. E os Comitês? São entidades civis que impulsionam a mobilização iniciada a partir do DF e ampliada entre os Estados da Federação, sendo o mais recente no dia 11 de agosto na capital goiana. Em síntese provisória, a iniciativa do governo federal para o projeto de lei reforça, em profundidade, o sentimento de honradez e reproduz os princípios éticos que informam as instituições republicanas.

2- A partir do caso Gomes Lund (e outros) vs República Federativa do Brasil, em novembro de 2010, é possível constatar a ausência de prerrogativas e, portanto, das imunidades aos que cometeram atentados e práticas nocivas aos direitos humanos. Por outra, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos se aplica a luz da interpretação das normas internacionais no intuito de dar eficácia plena ao sistema jurídico de proteção integral das pessoas e voto do juiz Figueiredo Caldas coloca em marcha o mesmo sentido do projeto de lei n° 7.376/2010, sobretudo, quando robustece esses fundamentos no âmbito de um ordenamento continental.

A releitura dos fatos descritos em "Raízes da violência" (Roland Corbisier, 1986) exibe a memória da tragédia sobre a qual o filósofo e pensador do ISEB afirmava que a violência tornou-se o nosso pão quotidiano. Consistente artigo do jurista e professor Fabio Konder Comparato "E agora, Brasil" reúne, para a atualidade, os fios condutores daquela condenação do Estado brasileiro na OEA. Será preciso lembrar? Os fatos que antecedem o período de exceção remontam a 18 de setembro de 1946 para alcançar o momento crucial da mega-operação, em 1964, para a derrubada de um governo constitucionalmente eleito. O apoio da mídia e a adesão de setores civis ao movimento consolidam a urgência na investigação destes 47 anos.

Será preciso lembrar? No instante que se aproximam os 32 anos da primeira lei de anistia, de 29 de agosto de 1979, este processo implica a necessidade de tipificação dos fatos e a dimensão exata de sua gravidade, sendo o enlace principal para o reconhecimento definitivo do que o conjunto da sociedade civil anseia. Os fatos e suas seqüelas se reportam a mecanismos e expedientes, na sua integralidade, tais foram atos institucionais e complementares, ao arrepio da norma constitucional de 1946, para gestação de poder. Será lembrar a "contabilização" das formas conclusivas de delinqüência, de onde agentes públicos, deliberada e sistematicamente, perpetraram atos desmedidos que, ainda, hoje, representam negação dos princípios elementares do Estado Liberal.

3- Frente ao direito penal comum, os seqüestros, aprisionamentos, torturas, sevícias, estupros serviram, como sempre, ao aniquilamento, tanto como, os desaparecimentos forçados de pessoas. Tais foram redundantes da ocultação destes mesmos fatos e, até onde o direito Internacional tem admitido, como lembra o juiz Cançado Trindade, da Corte Internacional de Haia, petições ou recursos ao nível da jurisdição internacional compulsória - independentemente do esgotamento dos recursos internos -, auxiliam as vítimas e, portanto, tendem a reforçar os mecanismos no esclarecimento dos fatos. Cumpre destacar ainda que, contrariamente ao que interpreta o STF sobre a lei de anistia, no julgamento da ADPF n° 153, os tratados e convenções de direito internacional repelem os crimes tipificados de lesa-humanidade.

Não cumpre, portanto, o "perdão" que se configura para a concessão da anistia, exceto, para as vítimas das perseguições do Estado e por seus agentes. Com efeito, ao declarar a anistia política esta norma, de 2002, proclama não só o direito a reparação econômica como autoriza o correspondente pedido de desculpas pelas arbitrariedades a que essas mesmas vítimas foram submetidas. Sob a ordem jurídica que se pretende justa, deve ser lembrado a todo instante o aperfeiçoamento do devido processo legal, para a construção da memória, da verdade, em favor do estado democrático de direito.

Sérgio Muylaert - integra o Comitê pela Verdade e a Memória (DF); membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros; vice presidente da Comissão de Anistia (2004-2008); ex-membro da CDH/OAB e da Asociación Americana de Juristas, presidente da ala fundadora (2000/2002 -Brasília/DF)

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Carlos Drumond de Andrade