quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Aluízio Palmar: “É preciso que a Comissão da Verdade faça justiça” – Especial para o QTMD?

Por: Ana Helena Tavares – QTMD?
Aluízio Ferreira Palmar, quando jovem, estudou Ciências Sociais na Universidade Federal Fluminense e, devido à sua luta contra a ditadura, foi preso e banido do país. Dissidente do PCB fluminense, organizou o MR-8, o Movimento Revolucionário 8 de Outubro. Palmar foi um dos presos trocados pelo embaixador da Suíça, em janeiro de 1971.
Anistiado, voltou ao Brasil e se radicou em Foz do Iguaçu, de onde concedeu entrevista exclusiva para o “Quem tem medo da democracia?” (Rio de Janeiro), através de 1 hora de conversa por áudio pela internet.
Palmar começa narrando o episódio que desencadeou sua busca por desaparecidos políticos e, posteriormente, viria a motivar o nascimento de seu 1º livro: “Onde foi que vocês enterraram nossos mortos?” Livro este que, conta Palmar, foi levado recentemente por um jovem para o Colégio Militar de Belo Horizonte e censurado pela direção.
Por esse tipo de pensamento, a possível presença de militares na Comissão da Verdade preocupa Palmar. Período amplo a ser investigado (46/88), uso do termo “reconciliação nacional”,  pequeno número de integrantes, falta de autonomia financeira, sigilo dos documentos… Todos estes pontos também são criticados por ele no projeto de lei. Com relação ao sigilo, lamentou dizendo: “Não tenho dúvida de que mais uma vez querem esconder as coisas. Jogar para debaixo do tapete.”
Além disso, defende o julgamento dos torturadores, que não é previsto pela Comissão. “Mas, para isso, a Justiça tem que ter a interpretação correta da lei”, disse. “E o Ministério Público, se ele é o que diz que é, tem que agir”.
Sobre o papel da presidência, pondera: “A Dilma é presidente de uma determinada conjuntura. Uma conjuntura muito difícil.”
Para ele, a sociedade civil tem que pressionar: ”No Chile, foi criada uma coisa chamada Funa. É mais ou menos o seguinte: eles juntam um grupo de pessoas, com um auto-falante portátil, um megafone, entram na casa ou no lugar onde trabalha um torturador e fazem o maior barulho, pedindo justiça. Estão permanentemente fazendo isso. Isso é sociedade civil mobilizada.”
Palmar garante não ter ódio de quem o torturou: “Seqüelas sim, ódio não. A gente não pretende fazer justiça pessoal. Não é do nosso pensamento. Nunca defendemos isso. Nós queremos que essas pessoas respondam na Justiça. Porque, se nós estamos num processo de democratização do país, vamos respeitar o ritual democrático, que é ouvir, interrogar e entregar para o Judiciário.” E lembrou: “Nós já fomos julgados, já fomos condenados, já cumprimos nossas prisões e nossos exílios.”
Perguntado se hoje vivemos numa democracia, garante que não: “Nosso judiciário é podre, podre! Ruim, ruim! É manipulado pelas elites.” E completou: “É preciso mudar a mentalidade da polícia brasileira. Caso contrário, nós vamos ainda estar vivendo a selvageria.”
Abaixo, a entrevista:
Ana Helena Tavares – QTMD?: Há uma história específica que envolve sua determinação em encontrar desaparecidos políticos. Gostaria que você nos contasse como foi.
Aluízio Palmar: Em 2005, o Ministério da Justiça fez um acordo com o departamento da Polícia Federal e eu fui credenciado a ter acesso aos arquivos da PF. Para descobrir rastros, pistas dos desaparecidos políticos da Estrada do Colono. O grupo da extinta VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). Eu já vinha há tempos, desde quando eu emergi da clandestinidade, para ser mais preciso, procurando por: Onofre Pinto, Joel José de Carvalho, Daniel de Carvalho, José Lavéchia, Vítor Ramos e Ernesto Ruggia. Não sabia onde eles estavam. Uma coisa era certa: não estavam no exílio mais. Não estavam no exterior nem no interior, então haviam desaparecido. E, neste processo de busca, aconteceu o meu acesso a alguns arquivos. Estamos falando de papéis, informes… Quando comecei a analisá-los, na metade da pesquisa, mexendo daqui e dali, encontrei um nome, que é citado várias vezes em casos semelhantes. Mais tarde, numa pesquisa que eu fiz num cartório de uma cidade próxima daqui (Foz do Iguaçu), descobri o mesmo nome. Aí eu resolvi me acampar em meio à região sudeste do Paraná. Levei fogaréu, aluguei um quarto, e fiquei por lá morando, de carro próprio. Para, ao sair dali, comunicar por onde essas pessoas passaram e ficaram, e quem era essa pessoa que apareceu o nome no arquivo. Então, eu fui até Três Passos e lá no quartel da Brigada Gaúcha, revirando uns documentos, eu descobri a mesma pessoa, porque ela cometeu um crime naquela região. O Comandante da Brigada recebeu um telefonema do Coronel de fronteiras pedindo que ele fosse libertado, porque era gente deles. E ele foi libertado. Eureca! Era o cara… Ligado às forças armadas…
Daí, comecei a procurar essa pessoa. Procurando, aqui por Foz do Iguaçu, até que eu descobri, graças ao Google, por causa de uma multa de trânsito. Depois, essa pessoa não quis falar comigo, mas falou com outros amigos – um empresário e um agente da Polícia Federal – e contou como aconteceu a chacina da Estrada do Colono. Contou que esses companheiros foram atraídos, no final de 74, quando o aparelho repressivo estava sendo desmontado. Foram atraídos pelos Coronéis Paulo Malhães e Teixeira Brandt. Foram atraídos para uma cilada. Entraram desarmados no Brasil, era fronteira seca, foram conduzidos para um sítio, daqueles no meio da floresta, no Parque Nacional do Iguaçu. E ali eles foram executados a sangue frio. Descoberto isso, que essa pessoa nos contou e para pessoas responsáveis em criminalidade, eu decidi fazer um informe, um relatório para a Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Mais precisamente, para a Comissão dos Mortos e Desaparecidos, que era a Comissão 9140 do Ministério da Justiça. Daí eu reparei que o meu relatório tava muito burocrático e dei um tempero jornalístico. E, de repente, fui entrando numa espécie de catarse, me soltando e me livrando de uma série fantasmas que eu tinha dentro de mim, que estavam entalados. Comecei a falar coisas que, durante anos, não comentei com ninguém, muitas nem eu me lembrava e começaram a vir à tona. Foi aí que comecei a escrever o livro “Onde foi que vocês enterraram os nossos mortos?”, contextualizando as lutas políticas e sociais contra a ditadura. No Estado do Rio de Janeiro, mais precisamente em Niterói, e aqui na região sudoeste do Paraná.
Ana Helena Tavares – QTMD?: A anistia foi mesmo “ampla, geral e irrestrita”?
Aluízio Palmar: Não. Não foi. Muitos companheiros ficaram na prisão depois da Anistia e só saíram depois que houve reforma das sentenças. Houve uma reforma da Lei de Segurança Nacional da ditadura. E aqueles que haviam sido condenados a cumprir pena de 20 anos, por exemplo, tiveram esse tempo diminuído para 5 ou 10 anos. Porque já estavam na prisão além da conta… Outros, como um menino de Pernambuco, que foi condenado à morte, não foram anistiados. Simplesmente a pena foi transformada numa prisão de longa duração, que, por sua vez, foi reduzida por uma pena menor e, depois, ele foi liberado. Mas não foi anistiado, houve uma redução de pena. Aconteceu isso com muitos.
Ana Helena Tavares – QTMD?: Qual a importância de que a sociedade brasileira tenha direito ao esclarecimento dos crimes da ditadura?
Aluizio Palmar: Um jornalista argentino comentou há pouco tempo que essas Comissões da Verdade, criadas em vários países do mundo, não são tanto para averiguar o que aconteceu e nem para desvendar verdades para os familiares das vítimas ou para os militantes de esquerda, mas sim para a parcela da população que não teve e não tem conhecimento desse período de tirania.
Não é que nós estejamos atrasados. São momentos da história… Não houve possibilidade de fazer isso naqueles anos 80. Nós perdemos a possibilidade no processo de transição da ditadura militar para a democratização. Não foi possível passar a limpo essa história. Houve um acordo entre os partidos políticos e as classes dominantes – as famosas elites – e foi feita a transição sem aplicação da justiça. Esta é a questão.
E o que aconteceu? Aconteceu que nós atravessamos a década de 80 e a única mudança que nós tivemos foi a Constituinte. Depois, durante toda a década de 90, não avançamos no processo democrático. Ficamos com essa questão entalada e chegamos aos anos 2000 com o mesmo problema.
As instituições de hoje, tanto jurídicas como militares e policiais, mantém os vícios do período da ditadura. Veja bem… Os Autos de Resistência que são adotados pelas delegacias de polícia militar de vários Estados são uma excrescência índica. Como pode um policial executar uma pessoa, um ser humano, e declarar que foi porque houve resistência à prisão e ficar por isso mesmo?! Isso nos faz lembrar os tempos da ditadura, quando muitos dos nossos companheiros caíram, foram executados pela tortura, ou a sangue frio, e em alguns documentos da ditadura a que a gente tem acesso aparece escrito “resistência à prisão”.
Crimes horrorosos, como aquele da juíza Patrícia Acioli, e aquele do menino Juan, são crimes refutados por milícias armadas. Naquela época, os grupos mais violentos da repressão eram muito parecidos com essas milícias e eram financiados por empresas particulares. Eu quero dizer com isso que, como não houve uma passagem com justiça, o Brasil passou a fazer apologia do crime. No Brasil, o crime passou a ser coisa impune e as avenidas, ruas, praças, escolas!, levam o nome de ditadores ou de pessoas que, naqueles governos, foram cúmplices de assassinatos e de desaparecimentos forçados. Por isso é necessário uma Comissão da Verdade. Porque, na medida em que o país reverencia o crime e homenageia os criminosos, está alastrando a impunidade. É preciso que a Comissão da Verdade venha com força, não só para ouvir pessoas e fazer relatórios, fazer mais documentos – que, segundo o projeto de lei, serão sigilosos – e ficar isso arquivado não sei onde, não sei pra quê. É preciso que a Comissão da Verdade faça justiça.
Porque se ela não tiver esse caráter… É para “inglês ver”. É simplesmente para satisfazer à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que no ano passado não só convidou como obrigou o Brasil a prestar contas de todo esse período de ditadura.
Ana Helena Tavares – QTMD?: Da forma como foi aprovada, há vários pontos que têm sido criticados nessa Comissão da Verdade. Quais você apontaria?
Aluízio Palmar: O fato de o período investigado ser de 46 a 88 é um dos problemas. Nós temos um documento, que já está na internet e será enviado ao Congresso, ao Poder Judiciário e à Presidência da República, onde fazemos uma série de considerações acerca do projeto de lei e uma delas é esse longo período. Isso não tem sentido. A Constituição de 46 era democrática. Foi construída depois da 2ª guerra, com a vitória dos Aliados. O período de 46 a 64 – últimos anos do Getúlio Vargas e governo Juscelino – foi de democracia. Boa ou má, mas era melhor que a ditadura. Não tem nada que averiguar nesse período. Houve uma ruptura da democracia em 1º de Abril de 1964. E é a partir daí que têm que ser averiguados os crimes da ditadura. Ampliar o período é simplesmente querer não investigar nada. Tem que focar em alguma coisa. Claro que antes de 64 houve muitas violações aos direitos humanos, mas são coisas diferentes.
Outro ponto que a gente critica é quando o projeto de lei fala em “promover a reconciliação nacional”. Não! Isso tem que ser substituído por: promover a consolidação da democracia no Brasil. Não é a mesma coisa. Porque reconciliação de que com quem?
Outra coisa é o número de pessoas que poderão integrar a Comissão. O Brasil é imenso… Sete pessoas? Sete notáveis, que vão se perder… Não sabem por onde procurar. Não sabem por onde começar. Sete pessoas pra investigar e promover justiça das coisas que aconteceram num período de 40 anos? Não dá, não dá…
Então, que sejam criadas Comissões da Verdade nos Estados e Municípios. Para levar a uma instância superior as questões que forem analisadas. O que não pode é esse grupo tão pequeno investigar 40 anos.
Sem falar na autonomia financeira que essa Comissão deve ter para poder viajar pelo Brasil afora. Ela está atualmente subordinada ao orçamento da Casa Civil, dependendo da ministra Gleisi Hoffman, que não tem um conhecimento nem um comprometimento muito forte com essa causa. Ela é do Paraná, é uma boa moça, muito simpática e competente em algumas coisas, mas não tem afinidade com a causa. Então, como ela é técnica, eu não sei até que ponto ela vai dar condições de dotação orçamentária a essa Comissão. Então, toda a vez que um integrante precisar de uma passagem, que seja, vai ficar dependente. Por exemplo, convoca uma pessoa para depor que mora lá na Ilha do Marajó ou qualquer outro lugar do Brasil. Até sair a passagem, até o Ministério do Planejamento liberar, vai tempo… O processo de liberação em Brasília não é rápido, é devagar, é burocrático… E a gente se preocupa muito com isso, porque essas dificuldades podem emperrar um bom trabalho da Comissão da Verdade.
Mais um ponto importante a ser criticado é que os dados ou documentos serão sigilosos, não poderão ser divulgados a terceiros. Ora bolas! Então, para que serve essa Comissão? Esse parágrafo deve ser substituído por outro que garanta amplo conhecimento pela sociedade dos fatos que motivaram as grandes violações.
Não tenho dúvida que mais uma vez querem esconder as coisas. Jogar para debaixo do tapete. Porque se a Comissão deve ser justamente para que a população que não tem conhecimento passe a ter sobre o que aconteceu, então deve ser dada ampla divulgação a tudo o que for tratado.
Ana Helena Tavares – QTMD?: Já há candidatos às sete vagas para integrar a Comissão. Como você acha que deve ser essa seleção?
Aluízio Palmar: Os nomes quem escolhe é o Executivo, né… É de cima para baixo. Nós defendemos que a seleção dos membros deve ser precedida de consulta aos órgãos que defendem os direitos humanos, órgãos da sociedade civil ligados aos perseguidos e desaparecidos políticos, ao grupo “Tortura nunca mais”. Que haja uma consulta prévia. Para que a escolha do Poder Executivo contemple os familiares dos desaparecidos políticos, que hoje são os principais personagens de tudo isso.
Ana Helena Tavares – QTMD?: Qual deve ser a grande missão dos escolhidos para integrar a Comissão?
Aluízio Palmar: Importante, na nossa avaliação, que as pessoas que vão compor essa Comissão tenham na visão que não é possível fazer um trabalho de justiça e de verdade no Brasil enquanto vigorar aquele artigo da Lei de Anistia – que não precisa ser mudada, é uma questão de interpretação – que diz que revoga as punições dos Tribunais Militares, mas que, segundo algumas pessoas, inclusive o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, também perdoa os torturadores, os criminosos. 
Ora bolas! Se você tem uma jurisprudência, se existe uma lei no Brasil e no mundo que diz que tortura é crime contra a humanidade… Isso é direito internacional… E também se existe uma lei no Brasil que diz que ocultação de cadáver é crime continuado e imprescritível… Pode levar 50 anos, mas o crime continua… Nós não podemos ir contra a lei! A Comissão da Verdade tem que ter esse entendimento. Mas não adiantará ter, enquanto o STF entender o contrário. Então, o STF tem obrigação – os ministros estão ali para isso – de preservar as leis e a Constituição. Porque se o STF decide que ocultação de cadáver não é crime continuado é o fim da picada.
Você pega uma pessoa, mata, some com o cadáver… É o mesmo caso daquele Bruno: é crime continuado. O corpo da Elisa Samúdio não apareceu. Ele tá na cadeia. Os nossos companheiros também sumiram, ninguém sabe deles. Onde está Stuart? O deputado Rubens Paiva? Ninguém sabe… Onde está o Jonas? Aqui no Paraná são seis e tantos outros pelo Brasil. Não estão mortos nem vivos, estão desaparecidos. Um desaparecimento forçado. Quem são os responsáveis? Que respondam na Justiça! Que a Comissão da Verdade ouça essas pessoas e encaminhe para a Justiça. Eles têm que ser ouvidos, intimados. Mas, para isso, a Justiça tem que ter a interpretação correta da lei.
Ana Helena Tavares – QTMD?: Eles podem ser intimados, mas não comparecerem…
Aluízio Palmar: Se eles não comparecerem, estarão desobedecendo tanto os seus chefes civis como militares. Mesmo que o militar esteja na reforma, ele deve obediência. Isso é o código militar. Ele tem que comparecer senão o comando pune. Uma punição leve e ele pode acabar não indo de acordo com os conceitos que existem hoje. Então, eu prevejo que vamos ter pela frente muita luta.
São dois anos previstos para o trabalho da Comissão da Verdade. Provavelmente, estes dois anos vão ser prorrogados. Vai ser uma correria… Vai haver muita discussão. É preciso que a sociedade civil esteja atenta, discutindo essa questão. E criando fatos, como foram criados em vários países. Veja bem… No Chile, foi criada uma coisa chamada Funa. Uma coisa de chileno, meio difícil de entender. É mais ou menos o seguinte: eles juntam um grupo de pessoas, com um auto-falante portátil, um megafone, entram na casa ou no lugar onde trabalha um torturador e fazem o maior barulho, pedindo justiça. Estão permanentemente fazendo isso. Isso é sociedade civil mobilizada. No Brasil, as organizações, sindicatos, movimento estudantil, entidades afinadas na defesa dos direitos humanos, como o “Tortura Nunca Mais”, com certeza terão pela frente uma longa caminhada no sentido de pressionar a Comissão da Verdade, o Executivo, o Legislativo, o Judiciário, para que o Brasil definitivamente passe a régua nesse problema, cicatrize essa ferida.
Ana Helena Tavares – QTMD?: Ainda que a ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, tenha garantido que não haverá a presença de torturadores, essa Comissão permitirá que militares e integrantes de órgãos de segurança sejam designados como membros. Que tipo de conseqüência isso pode trazer?
Aluízio Palmar: Isso é preocupante. Apesar de a maioria das forças armadas terem uma visão um pouco melhor do que aqueles que viveram na ditadura – uma visão mais democrática, mais moderna –, mesmo assim, os colégios militares no Brasil, como o “Agulhas Negras”, ainda vivem no período da guerra fria. Veja bem, no Colégio Militar de Belo Horizonte, um aluno levou o meu livro para a sala de aula. A mãe dele foi chamada na secretaria e o diretor disse que não permitia este tipo de literatura subversiva. Nós estamos no século XXI, já se passaram mais de 40 anos do golpe e 32 da Lei de Anistia. E os militares ainda continuam com essa mentalidade. Então, militar tudo bem, mas eles têm que mudar este pensamento. Não existe discriminação contra eles, fazem parte da nação brasileira. Eu não sou anti-militar. Nós tínhamos no nosso movimento muitos militares patriotas, como o Almirante Aragão, o Jeferson e uma infinidade. Então, existem militares e militares. É preciso que eles acabem com essa visão atrasada, que ficam remoendo coisas do passado de um jeito maniqueísta. Não pode, por exemplo, a ROTA (ex-Rondas Ostensivas Tobias Aguiar, atual 1º Batalhão de Polícia Militar Tobias de Aguiar) de São Paulo ter no seu site a defesa da ditadura. Uma instituição que é ligada à Secretaria de Segurança Pública de SP, que pertence ao Governo do Estado de SP, estar defendendo a ditadura, dentro do período democrático.
Então, as nossas forças policiais militares têm que focar na reforma de sua instituição, que ainda aplica a tortura como método interrogatório nas delegacias pelo Brasil afora. Só não vê quem não quer. Têm delegados de polícia que declaram isso… Gente, não pode! O Brasil ainda tem pau-de-arara! Então, como que essas instituições vão ter acento na Comissão da Verdade e Justiça – que nós queremos – se elas ainda praticam tortura e defendem a ditadura e os criminosos daquele período?! Não pode! Simplesmente não pode. Por esse motivo a gente veta. Não é porque eles usam uniformes militares, mas porque eles defendem os militares que macularam as fardas das forças armadas. Que fizeram coisas horríveis, praticaram crimes horrorosos, sobre os quais o Brasil pouco sabe. Estupros, torturas a crianças, esquartejamentos… O assassinato do Virgílio Gomes da Silva, o Comandante Jonas de São Paulo, não houve no mundo selvageria semelhante… A ponto de os olhos dele saírem das órbitas de tanta tortura que ele levou. Há depoimentos gravados, como o da Maria Auxiliadora Lara Barcelos, ou do Frei Tito, que já faleceram, se suicidaram, porque não agüentaram viver depois da tortura. Só esses depoimentos já são suficientes para pôr essas pessoas no Tribunal para serem julgadas. É isso o que todo o Brasil tem que conhecer.
Mas é um longo trabalho… A gente não tem canais. A gente vai à escola, vai à faculdade pra falar. Tem você e outros jornalistas conscientes que usam seus espaços, mas a grande imprensa não nos dá espaço para falar. Então, é essa dificuldade que a gente tem: de fazer com que a nação conheça os crimes do passado.
Ana Helena Tavares – QTMD?: O que você acha da expressão “revanchismo”, cunhada por setores contrários à Comissão da Verdade?
Aluízio Palmar: Que revanche? Não existe isso! É claro que eles alegam isso para desacreditar as nossas bandeiras de justiça. Como revanche? Nós já fomos julgados, já fomos condenados, já cumprimos nossas prisões e nossos exílios. Eles nunca foram julgados, são acusados. E ficaram no Brasil, usufruindo, usufruindo e usufruem até hoje de favores, pensões e aposentadorias fabulosas. Têm todas as mordomias. Eles e seus familiares de forma perpétua, que é permanente. Então, ninguém está querendo tirar nada de ninguém.
A gente quer que se faça o que foi feito na África do Sul. Que admitam o que aconteceu e ajudem os familiares a saberem em que circunstância essas pessoas morreram e onde que eles ocultaram os cadáveres. Para que possa ser feito um funeral, um velório, uma coisa cristã. Então, é isso o que a gente está pleiteando, está pedindo. Porque nós sabemos que, com a idade, com o tempo, muitos já morreram, mas não é possível que pessoas que torturaram e que não admitem que erraram – dizem que fariam de novo o mesmo! – continuem por aí. Eles têm que ter vergonha de sair na rua. Têm que ser “carimbados”. Têm que levar um “carimbo na testa” de serem torturadores e criminosos. É para que nunca mais aconteça!
É para que a PM não continue matando. É para que acabe a tortura nas polícias civis e militares nos dias de hoje. Simplesmente porque para que o Brasil seja humanizado é preciso passar essa violência do passado a limpo. Se eles quiserem chamar isso de “revanchismo”, que chamem.
Ana Helena Tavares – QTMD?: Você, pessoalmente, guarda algum tipo de ódio dos militares que o torturaram?
Aluízio Palmar: Olha, na cidade onde eu vivo, vive também um torturador. Uma pessoa que pegou dois professores, a Isabel Fávero e o André Fávero, aplicou choque-elétrico nos dois. A Isabel recebeu choque na língua, na orelha e na vagina. Ela perdeu uma criança de quatro meses. Essa pessoa mora aqui. Eu nunca o vi, nem quero vê-lo e também nunca fui atrás dele para me vingar, porque ele também me torturou. Eu não guardo ódio, guardo seqüelas. Muitas seqüelas… Seqüelas sim, ódio não. A gente não pretende fazer justiça pessoal. Não é do nosso pensamento. Nunca defendemos isso. Nós queremos que essas pessoas respondam na Justiça. Porque, se nós estamos num processo de democratização do país, vamos respeitar o ritual democrático, que é ouvir, interrogar e entregar para o Judiciário. E o Ministério Público, se ele é o que diz que é, tem que agir. Mas, com exceção de dois Procuradores que atuam em SP e alguns outros no Brasil, o MP ainda não se deu conta da importância que tem nesse processo. Porque as denúncias de violações aos direitos humanos, no passado e no presente, desembocam no Ministério Público Federal. E cabe ao MP apresentar a denúncia para o Judiciário. E o MP tem conhecimento dos fatos… Se é assim, que investigue e encaminhe denúncia ao Judiciário com relação a tudo isso que estamos falando. Porque senão ele não estará cumprindo com seu papel. Estará se isentando, lavando as mãos, recebendo para não fazer nada… Eu estou provocando o MP Federal para que cumpra com seu papel constitucional. Atualmente, está prevaricando.
Ana Helena Tavares – QTMD?: Como você vê o papel que a presidente Dilma, uma ex-torturada, tem desempenhado nesse processo?
Aluízio Palmar: A Dilma é presidente de uma determinada conjuntura. Uma conjuntura muito difícil. Porque no Brasil, esse presidencialismo que temos aqui é meio raro, onde, para o presidente administrar o país, tem que lotear o governo entre os partidos que dão sustentação na Câmara e no Senado. Essa prática, que dizem ser republicana, é uma prática de negociata. Se uma determinada coligação, um determinado programa de governo, é eleito pelo povo, o governo logicamente tem que executar esse programa. E os ministérios têm que ser preenchidos tendo como critério o programa. Mas aqui não… Os ministérios são preenchidos de porteira-fechada. Ou seja, do ministro até o último escalão, eles pertencem a um partido que é dono. Isso traz muitos problemas na administração pública. E nós temos informações de que a presidente ainda não tem total liberdade de executar o seu programa de governo, levando em conta que tem que estar permanentemente negociando.
Essa Comissão da Verdade passou por uma longa negociação. E o apoio do PSDB foi muito importante. E não poderia ser diferente. O PSDB tem dentro do partido muitas pessoas que foram perseguidas e punidas no período da ditadura, então eles não podiam dar outra contribuição. Apoiar essa “Comissão da meia-verdade” era o mínimo que eles poderiam fazer. Mas mesmo assim, entrando com emendas, aquilo que já era ruim ficou pior ainda. Então, eu vejo que a presidente está indo bem tanto na política internacional como interna, mas a reforma política é mais do que urgente. Para que as próximas eleições nacionais sejam feitas dentro de uma nova realidade, que não seja essa dos negócios… Que seja com financiamento público de campanha e que a composição do governo seja feita dentro de critérios políticos, ideológicos, e não de negociações de apoio de base parlamentar. Mas, de um modo geral, a presidente está indo bem.
Ana Helena Tavares – QTMD?: Como você vê a atuação da mídia nessa questão?
Aluízio Palmar: Olha, a mídia é essa que nós temos. Não temos outra. Para fazer frente a ela, só a internet, só os blogueiros. Não tem outro caminho. Tem a imprensa alternativa, mas é pequena, tem pouca perna… A maioria da população não tem acesso. Então, é preciso pressionar. Alguma coisa vai ser dada pelos órgãos de comunicação que nós temos aí e muitos assuntos serão desvirtuados, mas é o processo. Nós vamos ter muita briga pela frente, não tem outro jeito.
Ana Helena Tavares – QTMD?: Você diria que hoje o Brasil é um país democrático?
Aluízio Palmar: Claro que não! Nós estamos há 40 anos tentando fazer justiça de transição! Os jovens que freqüentam hoje o Ensino Médio nasceram no período de transição. Muitos profissionais de jornalismo, medicina, engenharia, etc, nasceram no período de transição e já estão na casa dos 40 anos! Então, isso é um absurdo. Um processo longo, longo! E o sistema democrático ainda não foi aperfeiçoado… Nosso judiciário é podre, podre! Ruim, ruim! É manipulado pelas elites. É um país ainda em que, descaradamente, temos um judiciário de classe. É só ir às penitenciárias pelo Brasil afora, nas cadeias públicas, e ver a composição dos presos. Que tipo de presos nós temos nessas cadeias? Isso é um absurdo! É classe. A classe dominante põe a classe trabalhadora na cadeia, porque a classe trabalhadora enveredou pelo caminho do crime por não ter outras condições, porque é um Estado opressor. Então, é preciso uma reforma geral. Na política e no Judiciário. Isso para chegarmos à democracia. Senão, como dizer que vivemos num Estado democrático? Vivemos num Estado violento! Os instrumentos do Estado são violentos. A abordagem policial é violenta, é desrespeitosa com o cidadão. Põe a mão na cabeça, põe a mão nas partes íntimas das pessoas… A abordagem quando é feita na classe média é uma coisa, mas no barraco, na favela, na população de baixa renda não precisa nem de mandado policial… Entram no barraco, na casa das pessoas mais pobres, desrespeitando sua privacidade. Isso não existe! Então, é preciso mudar a mentalidade da polícia brasileira. Caso contrário, nós vamos ainda estar vivendo a selvageria. Não democracia.

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“Este é tempo de divisas, tempo de gente cortada. É tempo de meio silêncio, de boca gelada e murmúrio, palavra indireta, aviso na esquina.”
Carlos Drumond de Andrade