sábado, 12 de novembro de 2011

DITADURA - Por "Paulo César Fonteles"

                                  Ditadura

Finalmente a tortura volta a todas as bocas. Ela que está sempre presente em todo o mundo. Desde que fotos de presos iraquianos torturados reapareceram nos meios de comunicação, ficamos imediatamente em estado de choque, confrontados com a existência da tortura. As fotos são como ícones, com a característica de apenas mostrar um momento, imóvel no tempo e no espaço. Mas as histórias que pertencem a essas fotos, nada mais são do que amostras daquilo que já sabíamos.
A tortura passa dos limites, ela está além da barreira imaginária que criamos para definir o que é 'normal' no bom sentido da palavra. Mas para que essa linha imaginária possa ser notada como tal, precisamos conhecer o que está além dela. E é exatamente isso que acontece no caso da tortura. Ela é bem conhecida à consciência humana e é por isso mesmo sempre que possível ignorada. Caso contrário teríamos que julgar sempre, tudo o que fazemos ou deixamos de fazer a partir dos dois lados dessa linha. E isso nos enlouqueceria. Dessa forma, compreendemos porque Jean Améry, que foi torturado pelos nazistas como membro da resistência belga durante a Segunda Guerra Mundial, classificou a tortura como uma "essência". Para Amery, a principal característica da tortura é a descoberta de que "neste mundo, o outro pode existir como senhor absoluto, sendo que esse poder consiste em causar sofrimento e destruição" . Na tortura, a conexão entre dois seres humanos se restringe ao sofrimento, provocado por um e sofrido pelo outro.
A tortura subverte a ordem estabelecida. Dentro da hierarquia militar, que faz da tortura uma ferramenta, ela concede mais poder àquele que tortura que ao seu superior. Primeiro porque torturadores são efetivos, afinal de contas a tortura é efetiva. Segundo porque os torturadores são por um lado protegidos e premiados por seus superiores, que querem garantir sua lealdade e eficiência. Por outro lado tortura e torturadores têm que ser desmentidos, para que a funcionalidade do sistema que é considerado normal não seja colocada em risco. Elio Gaspari, o mais importante historiador da ditadura brasileira, descreve claramente como a tortura enfraquece não apenas a hierarquia militar, porque cria privilégios extraordinários, mas também a política e a justiça, que tentam declarar a injustiça por justiça, ou de negar simplesmente a verdade. Além do mais a imprensa é corrompida porque não consegue denunciar publicamente aquilo que ela sabe que está acontecendo. A tortura por fim desmoraliza toda uma sociedade. Foi isso que aconteceu durante a ditadura militar brasileira, que começou em 31 de março de 1964 com um golpe, foi se abrindo muito gradualmente a partir de 1975, e, no entanto, chegou ao seu fim apenas com as eleições diretas para presidente em 1989.
Para as vítimas da tortura é difícil conseguir a atenção pública. Mesmo nos casos mais recentes do Iraque, o interesse pelos torturadores foi maior do que o interesse pelos torturados. Talvez a nossa identificação com os torturadores seja mais fácil, mesmo considerando-se as aberrações cometidas por eles, porque ao ouvirmos sobre as torturas também nos sentimos fracos, torturados. E quem deseja se sentir assim?
É sempre uma empreitada complicada, dentro de uma ditadura, dar voz às vítimas de torturas, porque corremos o risco de sermos também perseguidos. Em uma democracia livre é difícil falar sobre tortura porque ela traz à tona uma realidade que está em conflito direto com aquilo que a sociedade acredita. Na Alemanha durou décadas até que a opinião pública começasse aos poucos a se confrontar com as vítimas do Holocausto. E mesmo depois de mais de trinta anos nos dedicando ao assunto, ainda não conseguimos chegar a um fim. Uma nova fase dessa discussão começou nos anos 80, quando os filhos dos algozes começaram a tratar publicamente de sua própria qualidade de vítimas. Hoje em dia, mais de 60 anos depois do fim da guerra e com quase todos os responsáveis mortos, todos viraram vítimas da história como mostram os atuais debates sobre a questão de se o sofrimento dos alemães expulsos dos territórios perdidos deve ou não ter um lugar na história da Segunda Guerra Mundial.
No Brasil as condições para uma discussão semelhante são incomparavelmente mais difíceis, porque diferentemente de todas as outras ditaduras sul-americanas, notavelmente a argentina, a chilena e a paraguaia, a ditadura brasileira foi e ainda hoje é tida como bem menos rigorosa. Os motivos para tal são muitos e, novamente, se caracterizam por imagens. Quando, em 1968, o povo em quase todo o mundo ocidental ia às ruas protestar, houve também no Rio de Janeiro a Passeata dos Cem-Mil. Enquanto os estudantes norte-americanos protestavam contra a guerra do Vietnã, os estudantes alemães contra as mentiras do pós-guerra, os franceses contra a estagnação da 5ª República e os tchecos contra o regime Bolchevique, os estudantes brasileiros foram às ruas contra o seu regime militar. Tinham como objetivo convencer os militares a devolverem o poder aos civis. Inicialmente, essa também tinha sido a meta dos golpistas, mas o primeiro presidente militar a ser nomeado, General Humberto de Alencar Castello Branco (1964 até 1967), não conseguiu se fazer prevalecer contra o grupo radical em torno do General Arthur da Costa e Silva (presidente de 1967 até 1969), que tinha como objetivo a instalação de uma ditadura.
Diferentemente dos outros países onde havia protestos estudantis e também diferentemente do Chile e da Argentina, existia no Brasil uma relação muito desproporcional entre uma camada alta da sociedade muito pequena, com seus empresários, acadêmicos e artistas, e a grande maioria da população de 94 milhões de Brasileiros naquela época. As pessoas estavam tão preocupadas com a sobrevivência diária, que uma manifestação política era incompreendida, se não passava completamente despercebida.
O Brasil é o quinto maior país do mundo, seu território de aproximadamente 8,5 milhões de Km², corresponde ao território dos EUA sem o Alaska. O censo de 1970 mostra que nesse país enorme e com uma infra-estrutura subdesenvolvida, aproximadamente 33% da população era completamente analfabeta, o correspondente a 31 milhões de pessoas. O número de analfabetos funcionais devia ser muito maior. Segundo o Instituto Paulo Montenegro, que, desde 2001, publica anualmente o "Indicador de Alfabetismo Funcional" (INAF), em 2005, somente 26% da população brasileira na faixa de 15 a 64 anos de idade estava plenamente alfabetizada. Este número não aumentou desde 2001.
Em 1970 quase a metade dos Brasileiros (46,28%) entre 5 e 19 anos não frequentava a escola. Em 1969 havia 343.000 estudantes matriculados nas universidades brasileiras. Isso siginificava aproximadamente 0,38% da população total. A grande maioria das pessoas com boa ou muito boa formação profissional morava no eixo centro-sul, nas metrópoles São Paulo e Rio de Janeiro. Na área do grande Rio, 7% da população pertencia à elite no ano de 1964, o ano do golpe. Desses, 60% prestaram vestibular. No mesmo período, aproximadamente 70% da população vivia em estado de miséria; destes, apenas 7,5% prestaram vestibular.
Como vemos, no Brasil existia um grande desnível no panorama educacional. Por isso não é de se estranhar que a participação da população nos momentos de relevância social era tão pequena. A reação do regime militar contra a minoria ativa, que em geral era composta por estudantes, intelectuais e professores universitários, era bastante rigorosa. Assim como na maioria das sociedades ocidentais, a grande maioria da elite conservadora brasileira tinha um medo histérico do comunismo. Os militares, que se recrutavam dessa elite, estavam cegos ao fato, de que a esquerda não representava fonte de risco. Assim como o governo de esquerda de João Goulart, contra o qual o golpe de 1964 foi feito, não queria nem poderia estabelecer um regime comunista segundo o modelo soviético no Brasil. Entretanto, até hoje, muitos conservadores acreditam que naquela época o Brasil foi salvo dos comunistas. Mesmo depois de 30 anos, Carlos Alberto Brilhante Ustra, major e chefe da polícia secreta de São Paulo entre 1970 e 1974, onde havia mais de 2000 presos políticos, que também foram torturados, ainda justifica os métodos da direita militar com a luta contra a minoria de esquerda.
No dia 13 de dezembro de 1968 logo após a Passeata dos Cem-Mil, a lei do chamado AI-5 (Ato Institucional número 5) foi promulgada. O AI-5 cancelou por tempo indeterminado todos os direitos políticos assim como muitos direitos civis importantes. O Parlamento que tinha, até o momento, uma função de álibi, foi fechado, parlamentares foram presos e inimigos políticos tidos como agitadores foram jogados na cadeia e torturados. Nos anos seguintes, a tortura institucionalizou-se. Oficiais davam aulas de tortura nas escolas militares e a partir do ano de 1973 foram enviados especialistas em tortura ao Chile para ensinar a tortura com choques elétricos aos novos donos do poder local.
A ditadura teve no início grande liberdade porque a resistência se resumia a alguns extremistas de esquerda, que da ilegalidade seqüestravam diplomatas para forçar a libertação de camaradas presos ou assaltavam bancos para se financiar, cometiam atentados e sonhavam com o estabelecimento de um governo socialista. Eles não procuravam se juntar às forças democráticas existentes no país, e por isso permanceram isoladas. Entretanto, também a resistência democrática brasileira era muito fraca. A sociedade brasileira não era acostumada com a democracia e sim com regimes autoritários, e via, por isso, na ditadura militar o menos pior. A resistência era facilmente rotulada e perseguida como terrorista, muitas vezes com a ajuda da população na descoberta e prisão de seus membros. O terrorismo de esquerda era, naquele tempo, um problema agudo em quase todas as sociedades ocidentais, por isso era fácil para os militares usar esse termo para disfarçar a luta contra a oposição. O regime desfrutou ainda do apoio decisivo do governo americano administrado por Nixon, que morria de medo de uma América do Sul socialista. Somente com a eleição do presidente americano Jimmy Carter, em novembro de 1976, os donos do poder no Brasil começaram a ter problemas.
Ao mesmo tempo e quase que na contra-mão deste desenvolvimento, aconteceu o milagre brasileiro; o país registrou excelentes números de crescimento, tornou-se a 10ª maior economia do mundo e o primeiro país industrializado sul-americano. A indústria do entretenimento explodiu, na maioria das casas havia uma televisão, o gênero musical anotava as maiores vendas da história lançando muitos artistas novos ao estrelato, como Chico Buarque de Hollanda, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Roberto Carlos, Rita Lee e muitos outros. Foram iniciadas obras gigantescas como a Transamazônica, uma estrada que deveria "integrar" o enorme território da Amazônia ao país. Livros cheios de otimismo com títulos como "O Modelo Brasileiro" ou "Construindo o Brasil" celebravam o golpe militar de 1964 como "revolução" e ponto de partida para o crescimento de todos os segmentos da sociedade. O país se via como futura potência no nível mundial, falava-se do "Brasil Grande".
E em 1970 o Brasil ganhou com Pelé, o maior ícone do esporte brasileiro, pela terceira vez a copa do mundo. Quando o Brasil fez o gol decisivo, o presidente, general Emílio Garrastazu Médici, saiu correndo pelos jardins do Palácio da Alvorada com uma bandeira nacional nas mãos, uma bola de futebol nos pés e um sorriso brilhante na boca.
Essas foram as imagens que correram o mundo e até hoje influenciam a forma que os estrangeiros vêm o Brasil: Música, Carnaval e Futebol. Da noite para o dia o Brasil tornou-se exportador de imagens da alegria de viver, sensibilidade e potencial artístico. Não de ditadura e tortura. O Chile e a Argentina não tinham esse tipo de imagem para vender.
A pouca consciência política da população e o crescimento econômico são até hoje as principais causas do pouco conhecimento dos brasileiros da própia história. Um país, onde a maioria da população tem pais que não sabiam o que acontecia, quando acontecia, teria que aprender a própia história como se fosse uma história estrangeira. Mas esse momento ainda está por chegar. O Brasil, para Stefan Zweig um país sem história, é hoje um "País sem Memória" que tenta chegar ao novo através do esquecimento do passado. No dia 24 de março de 2006, o jornalista Flávio Tavares escreveu no jornal gaúcho Zero Hora, por ocasião do aniversário de 30 anos do golpe militar argentino: "Nós 'o país do futuro' odiamos o passado. Eles [os argentinos] pesquisam o passado para dele aprender e evitar os erros de ontem." Depois, ele menciona os militares argentinos que foram presos, cita outros que adimitiram publicamente os erros das forças armadas, e deixa a entender que no Brasil nada disso ocorreu.
O principal motivo para que o passado seja esquecido é a chamada Lei da Anistia, que no dia 28 de Agosto de 1979 entrou em vigor durante o governo do Presidente João Baptista Figueiredo (1979 até 1984). Ela anistia não somente a oposição (com exceção dos "terroristas"), mas também aqueles que cometeram os chamados "crimes conexos". Essa parte da lei deu aos militares a chance de chamar os seus crimes de simples conseqüências dos crimes políticos cometidos pelas suas vítimas. Assim, a responsabilidade moral dos crimes foi indiretamente repassada às vítimas. Uma lei complementar do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995 até 2003), editada em 1995, não mudou nada neste fato, apenas regulamentou a questão das indenizações e oficializou os desaparecidos como mortos. Até os dias de hoje ainda não foi possível punir os crimes dos torturadores durante a ditadura, mesmo que esses crimes estejam comprovados. Uma superação do passado de forma democrática é, desta forma, impossível de acontecer. Pelo contrário: criou-se uma cultura da "impunidade" que, atualmente, está sendo muito lamentada pela mídia e pelos políticos. No entanto, o termo é usado apenas para falar do crime organizado. Mas as raízes profundas têm a ver com a sociedade como um todo. E uma sociedade que não conseguiu ainda re-estabelecer a justiça para os crimes do passado, tem necessariamente problemas para impôr a lei no presente.

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Carlos Drumond de Andrade