sábado, 12 de novembro de 2011

Dossiê Araguaia Parte 1


A Guerrilha do Araguaia teve inicio num período em que todos os canais de respiração política da sociedade brasileira estavam amordaçados. Foi um tempo em que a classe operária estava impedida de reivindicar os seus mínimos direitos, a imprensa se encontrava censurada, os livros apreendidos, artistas espancados e os estudantes proibidos de protestar ou mesmo estudar. Prepostos do governo norte-americano prestavam luxuoso auxílio aos torturadores brasileiros e uma parcela significativa da intelectualidade aderindo ou pelo menos silenciando ante ao massacre quase que diário de patriotas que morriam nas câmaras de tortura do sistema, ou em lutas desiguais contra os órgãos de repressão.
É por volta de 1966 que ela começa a se organizar. Surge em decorrência de enfrentar a ditadura terrorista através da luta armada. Solução extremada, quando as contradições chegaram a um grau tão agudo que, na opinião do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), organizador e dirigente do levante armado no sul do Pará, a luta pelas armas se apresentava como o único caminho viável para pôr fim ao estado de exceção inaugurado à 31 de março de 1964.
Um grupo de brasileiros, em sua grande maioria de jovens universitários, perseguidos pelo regime ditatorial começa a se aglutinar, ligarem-se as massas camponesas da região do Araguaia. Os futuros combatentes vindos de várias partes do país procuraram tomar contato com as massas locais, viviam e discutiam com elas, partilhando de sua situação de oprimidas. Os primeiros, Osvaldo Orlando da Costa, Daniel Callado e Amaro Lins chegaram à cidade de Conceição do Araguaia no inverno de 1967 quando as águas caudalosas do generoso rio dos karajás estavam transbordantes.
Logo depois, em dezembro do mesmo ano desembarca na Faveira, hoje município de São João do Araguaia, o ex-Deputado Constituinte de 1946 e membro do birô político do partido dos comunistas, Mauricio Grabois.
Quando a Guerrilha teve inicio, em 12 de abril de 1972, o Brasil era presidido pelo General Emílio Garrastazu Médici que, na opinião de muitos pesquisadores sobre a ditadura militar brasileira protagonizou o período mais sangrento daqueles "anos de chumbo". Tal período teve como referência fundamental os pressupostos do Ato Constitucional №.5 – o AI-5-, baixado por Costa e Silva em 13 de dezembro de 1968 que aumentou os poderes do Presidente da República e reduziu as liberdades individuais e coletivas. Permitiu a cassação de mandatos políticos, a suspensão de direitos civis e a censura.
O regime dos generais se mantinha graças ao sucesso da economia e à repressão aos adversários. O país crescia à média de 11% ao ano; a taxa de desemprego era de aproximadamente 3,5%. No inicio da ditadura, a inflação chegava a 80% ao ano. O crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) estava em 1,6%. O governo adotou uma política recessiva e monetarista. Os objetivos eram: sanear a economia e baixar a inflação para 10% ao ano, criar condições para que o PIB crescesse 6% e equilibrar o balanço de pagamentos.
A economia deu um salto em 1970. Investimentos externos ampliaram a capacidade produtiva e o "milagre" deu-se até 1973. A partir de 1974 o crescimento começou a declinar. No fim da década, a inflação chegou a 94,7% . O "milagre" revelou fraqueza no campo social. Houve tendência à concentração de renda e o rápido crescimento beneficiou mais a mão-de-obra especializada. O salário mínimo baixou, e Médici chegou a afirmar em 1971: "O país vai bem e o povo vai mal".
Mesmo com o choque do Petróleo em 1974, a economia cresceu 6,7% ao ano. Quando o governo militar acabou, em 1985, deixou a herança de uma dívida de US$ 102 bilhões, contra apenas US$ 3,3 bilhões em 1964.
O regime tratou a Amazônia dentro da doutrina de segurança nacional. A riqueza das florestas, dos rios e do subsolo, com alta incidência de cristais, despertava interesses externos e internos. A construção da Transamazônica atendia à estratégia de ocupação territorial e dava ao governo uma obra monumental para simbolizar o "milagre". O primeiro trecho, entre Estreito (MA) e Marabá (PA), foi aberto em 1◦ de setembro de 1970.
Enquanto rasgava a floresta virgem, o governo abria uma temporada de incentivos para a exploração da madeira, minérios e pecuária. Criou o Banco da Amazônia (BASA) e a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM). Em 1970, Médici lançou o Programa de Integração Nacional (PIN), com a meta de assentar 100 mil famílias ao longo da Transamazônica. Migrantes chegavam à busca de ouro e cristais. Outros queriam um naco da floresta para colher castanha ou terra para plantar. Abriam clareiras com fogo, faziam casas e tomavam posse.
Quando o Exército realizou a Operação Mesopotâmia, no Maranhão e no norte de Goiás, hoje Tocantins, perto dali, montava-se as bases da maior iniciativa de luta armada em território brasileiro desde a Guerra de Canudos. As cidades investigadas em agosto de 1971 faziam parte da rota dos militantes do partido, enviados para a guerrilha.
Os comunistas caracterizavam a ditadura militar como expressão política do imperialismo, do grande capital brasileiro e do latifúndio. Foi na VI Conferência, realizada na clandestinidade em São Paulo, em 1966, que aprovou-se o documento "União dos brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da ameaça neocolonialista".
A resolução dessa conferência expôs a tática do PCdoB e as discussões indicavam para a luta armada no campo. E é na continuidade dessa abordagem que amadurece a decisão do empreendimento de um movimento de resistência popular no Araguaia – dando origem à Guerrilha quando as forças da repressão invadiram a região no inicio de 1972.
Nos grandes centros urbanos houve uma escalada do terror oficial depois da edição do AI-5 e a situação agravou-se quando em setembro de 1970, a Presidência da República expediu a "Diretriz Presidencial de Segurança Interna", determinando que cada Comando de Exército passasse a ter um Destacamento de Operações de Informações (DOI) e um Centro de Operações de Informações (Codi). Para o regime significava a extensão da experiência de unificar as ações repressivas da Operação Bandeirante (Oban), de São Paulo, para todo o país. A ditadura criava, com essa medida, máquinas poderosas e interligadas de torturas e assassinatos – sob a cobertura "legal" da Presidência da República.
Em São Paulo, o DOI-Codi do II Exercito, comandado pelo perverso major Carlos Alberto Brilhante Ustra, promovia uma verdadeira chacina contra a resistência democrática e a guerrilha urbana. Nesse clima, permanecer nas cidades era um jogo absolutamente arriscado.
A decisão pelo Araguaia deveu-se a avaliação de que a região do Bico do Papagaio oferecia excelentes condições para a instalação de uma frente de luta armada. A floresta amazônica teve papel decisivo. O PC do B se espelhava em iniciativas semelhantes adotadas em países como Vietnã, Malásia e Angola.
A mata fechada protegeria os militantes e tornaria inútil a artilharia pesada das Forças Armadas. A caça abundante e outros alimentos extraídos da selva, como o babaçu e castanha, facilitariam a sobrevivência dos guerrilheiros.
O rio Araguaia significaria fartura de peixes e facilidade de deslocamento em pequenas embarcações. E serviria de obstáculo natural para a movimentação de tropas regulares. O transporte terrestre constituiria mais um problema para os militares. Trilhas e picadas formariam um imenso labirinto de caminhos tortuosos, subidas e descidas, grotas e igarapés. Experientes nas caminhadas e nas viagens em lombos de burro por toda a região, os guerrilheiros disporiam de larga vantagem.
Nos estudos feitos pelos comunistas, aviões e helicópteros teriam aproveitamento limitado na guerra de guerrilha e, na mata fechada funcionariam apenas como meio de transporte, sem utilidade em combates. Sem treinamento especifico, pára-quedistas se transformariam em soldados de infantaria, com as mesmas dificuldades de adaptação às condições de luta.
A imensidão de terras desabitadas permitiria aos grupos armados vasto campo de manobras, distribuídos pelos estados de Goiás, Maranhão, Pará e Mato Grosso.
As Forças Armadas teriam que montar acampamentos às margens da Transamazônica e da Belém-Brasilia, previam os comunistas. Isolados em longos trechos de estradas, os postos militares se tornariam alvos fáceis para os ataques de surpresa dos guerrilheiros.
Os comunistas também contavam com as dificuldades de abastecimento das tropas regulares. As cidades da região não dispunham de estrutura para abrigar e alimentar tropas para uma grande manobra militar. Quando tentassem transportar suprimentos de Goiânia, Anápolis, Brasília e Belém, sofreriam ataques de sabotagem.
O PC do B planejava nesse primeiro momento implantar três frentes guerrilheiras. Uma em Goiás, outra no Maranhão e, a terceira no Pará. As duas primeiras foram abortadas muito cedo por falta de condições materiais. O partido concentrou, então, todos os esforços nas bases montadas ao longo de 130 km, nos municípios paraenses de Conceição do Araguaia, São João do Araguaia e Marabá.
A deflagração de uma guerra popular prolongada, nos moldes aplicados por Mão Tse-Tung, permitiria a criação de uma zona liberada, controlada pelo movimento armado e sem a presença militar do governo. Pela estratégia imaginada, o sucesso da iniciativa no centro do país estenderia a guerrilha para o Nordeste, região mais populosa, castigada pela pobreza e berço natal de boa parte da população do Araguaia.
A Amazônia recebe nesse tempo, a cada dia, mais famílias fugidas da fome e da seca no Maranhão, Piauí, Ceará e Bahia. A maioria chega determinada a brigar pela sobrevivência. O sonho por um pedaço de terra esbarra nos grileiros, nos pistoleiros, na polícia e nos políticos corruptos.
Os camponeses revoltados com a miséria e com os desmandos dos poderosos formariam a massa que engrossaria os destacamentos guerrilheiros treinados para iniciar uma revolução popular. Outros moradores formariam uma extensa rede de apoio. As primeiras vitórias contra as Forças Armadas, na previsão dos comunistas, poderiam atrair revolucionários e organizações opositoras ao regime para o teatro das operações. As derrotas sofridas pela guerrilha urbana empurrariam militantes das cidades para o campo e reforçariam a luta armada do Araguaia.
Os organizadores da guerrilha têm como certo o apoio maciço da população. Mesmo que no inicio os militares se utilizassem de métodos demagógicos para tentar aproximação, cedo ou tarde partiriam para a violência e se isolariam dos moradores. As Forças Armadas, por esse entendimento, estariam enfraquecidas e os comunistas poderiam comandar a formação de um exército regular para combater as tropas oficiais.
No bojo dos acontecimentos do processo de colonização amazônica uma nova e conflituosa realidade vai se espraiando nas terras araguaianas. A partir de 1970 intensificou-se a grilagem. Falsos proprietários, mancomunados com a polícia e utilizando-se largamente de pistoleiros, começaram a expulsar antigos moradores de suas glebas.
A Sudam respaldava a ação predatória dos grileiros, aprovando projetos mirabolantes sem considerar a origem da propriedade neles indicada. Centenas de famílias camponesas foram, à força, expulsas de suas terras.
Próximo de Xambioá, no então vilarejo de São Geraldo, um grileiro de nome Antonino exigiu a retirada de duzentas famílias de uma área que dizia ser sua.
Às margens do Gameleira, pequeno rio que deságua na altura da cachoeira de Santa Izabel, um capitão reformado da Aeronáutica tratava de incorporar à Capingo as zonas adjacentes sem quaisquer indenização aos que lá viviam. Na ilha de São Vicente, defronte de Araguatins, duas centenas de lavradores receberam intimação para deixar suas moradas. Mais além, em São Domingos do Capim, seiscentas famílias eram atiradas ao desabrigo pelos latifundiários da empresa agropastoril Paraporã.
O descontentamento crescia enormemente entre os trabalhadores rurais que se recusavam a abandonar suas terras porque se agudizavam as ações arbitrárias e violentas das polícias dos estados envolvidos. As Forças Armadas, em fins de 1970, haviam realizado manobras militares na área do Araguaia-Tocantins com propósitos intimidativos.
 

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Carlos Drumond de Andrade