sábado, 12 de novembro de 2011

Tortura - Paulo Fonteles

  Tortura
 
Agora os esperavam meses de prisão e de tortura. Paulo Fonteles descreveu esse período em agosto de 1978 na revista "Resistência", na época ilegal:
Estudante da Universidade de Brasília, fui preso no dia 6 de outubro de 1971. Eram mais ou menos 10 horas da noite, quando, voltando de uma aula, fui abordado, na porta de casa, por uma moça que dizia haver recolhido minha mulher passando mal numa parada de ônibus da W3, colocando-se à disposição para me dar uma carona até o Hospital Distrital de Brasília, onde a Hecilda estaria hospitalizada.
Embarquei no Volks, dirigido por um homem, na companhia de outro vestido de enfermeiro. Aí começaria uma terrível experiência de sofrimentos, humilhações, roubos, processo de enlouquecimento, tortura, tentativa de assassinato, a que fui submetido durante longos meses.
O Volkswagen de fato dirigiu-se para a frente do Hospital Distrital de Brasília. Só que, quando o carro parou, a moça desceu correndo e o motorista, que mais tarde eu viria identificar como o terrível torturador delegado Deusdeth, da Polícia Federal me deu voz de prisão. Prisão essa manifestamente ilegal, pois não havia qualquer espécie de flagrante delito, nem muito menos uma ordem de prisão. Nada. Simplesmente a força da prepotência.
Em pleno 1971, quando as notícias de desaparecimentos, mortes, torturas de presos políticos eram freqüentes na imprensa do país, minha primeira preocupação foi dar a público minha prisão. Para isso armei uma enorme confusão na rua. Abri a porta do carro e comecei a gritar por socorro. Que estava sendo seqüestrado, que me ajudassem. Apesar da hora juntou-se logo um grande número de pessoas em volta do carro, quando um sem número de policiais, que já estavam à minha espera, conseguiu jogar-me no chão, algemando meus pulsos para trás. Eles diziam para o povo que eu era louco. Eu me debatia e gritava que era estudante da Universidade, me identificava, e pedia que avisassem a minha família em Belém, dizendo repetidamente o endereço de meus pais. Finalmente dominado, fui atirado ao banco traseiro do veículo, que arrancou ferozmente.
Fui levado diretamente para o Pelotão de Investigações Criminais, PIC, da Polícia do Exército de Brasília. No caminho já fui levando socos, tapas, telefones, coronhadas, sendo ainda informado que a minha mulher Hecilda, grávida de cinco meses, também já estava presa.
O PIC é o inferno. Nele, conheci logo a "salinha" sala de estar dos sargentos, onde eram promovidas as torturas a todos que eram presos no PIC. Sem que me fizessem uma só pergunta, "só para arrepiar", na gíria dos torturadores, experimentei na carne toda a selvageria do aparelho de repressão montado desde 1964. Inicialmente um brutal espancamento, murros, telefones, tapas, chutes no estômago, cacetadas nos joelhos e nos cotovelos, pisões nos rins. Depois, apesar de meu esforço para resistir, tiraram-me as roupas, deixando-me completamente nu, amarraram-me no pau-de-arara, e passaram a me aplicar choques elétricos, com descargas de 140 volts, na cabeça, nos órgãos genitais, na língua.
Depois de muito tempo é que começaram as perguntas. Como eu não lhes respondia, a "sessão" durou até alta madrugada, quando, já bastante machucado, fui arrastado e atirado dentro de uma cela. Entre outros, participaram dessa primeira sessão o delegado Deusdeth, da PF, o sargento Ribeiro, o sargento Vasconcelos, o sargento Arthur, cabo Torrezan, cabo Jamiro, soldado Ismael, soldado Almir, todos esses do Exército.
O dia 7, quinta-feira, ainda não amanhecera, qando o sargento Vasconcelos, elemento bestial, despudorado homossexual que se aparazia em ofender as companheiras presas, veio dizer que o da noite "fora só um aperitivo". Que agora era que o pau ia cantar mesmo.
Cedo, um destacado elemento da tortura do PIC, o cabo Martins, foi me buscar na cela, Colocou-me um negro capuz e levou-me para a "salinha". Durante quase três dias seguidos, quase sem interrupções, fui submetido às mais diversas formas de violências físicas que se possa conceber. Nu, pendurado pelos pulsos e tornozelos no pau-de-arara (uma barra de ferro, sobre dois cavaletes, onde o preso fica dependurado, assim como se fosse um porco que vai ao mercado), recebendo espancamentos generalizados, choques elétricos, afogamentos.
No pau-de-arara, o preso ainda tem força na primeira hora para sustentar o peso do corpo, Com o tempo, todavia, o corpo vai sendo puxado para baixo e começa uma doloríssima distensão dos braços e das pernas. Parece que os ossos vão se partir, todos.
O choque elétrico é particularmente terrível na cabeça. Na bolsa escrotal, é como se ela estivesse sendo esmagada dentro de uma prensa. O choque elétrico, além de ser, em si, terrível, provoca uma contração alucinada dos dentes, que me cortava toda a língua. A cada descarga uma golfada de sangue tingia o capuz. Para aumentar os efeitos das descargas, obrigavam-me a comer sal. Minha boca ficou toda queimada. O afogamento era feito com a infiltração de água na minha boca e nas narinas através de mangueiras de borracha. Eu sufocava e estertorava. Tudo isso no pau-de-arara. Nesses dias revelou-se particularmente perverso o sargento Ribeiro. Ele ria e cantava. No sábado de manhã eu já estava completamente exangue. Quase não mais sentia dor. Apenas uma vontade de descansar.
Então, na primeira oportunidade que tive, ao me descerem do pau-de-arara, girei o corpo e dei com a testa no chão. Desmaiado e sangrando fui então levado para a cela, onde pude finalmente descansar. Devido a esses três dias eu ficaria com o braço direito e a perna esquerda paralisados durante quase três meses.
À tardezinha, lá pelas 18 horas, a cela se abriu. Viera me ver o capitão Magalhães. Até então eu não tivera contato com nenhum oficial. Eu não podia nem falar, nem me mexer. Falou-me o capitão Magalhães que quem havia feito aquilo comigo fora o pessoal da Polícia Federal. Que o Exército não torturava. Que nada mais iria me acontecer. Que na segunda-feira meu depoimento seria tomado. Mandou comprar-me leite gelado e ofereceu-me cigarros. Dias depois esse mesmo capitão comandará novas sessões de tortura, dentro do próprio Ministério do Exército, na Esplanada dos Ministérios, a 500 metros do Palácio do Planalto.
Na segunda-feira (dia 9 de outubro) tiraram-me da cela e arrastaram-me a uma espécie de posto de recepção. Lá, pela segunda vez, vi minha mulher. A primeira fora através de um ardil. Na própria quinta-feira, em meio às torturas, disse-lhes que confessaria tudo se me permitissem ver minha mulher. Eles então me desamarraram do pau-de-arara, e conduziram-me a uma sala por onde, através de um vidro pude reconhecê-la e confirmar sua prisão. Mas como na verdade não tive nada para confessar, não o fiz, enraivecendo-os mais ainda.
Agora a Hecilda estava bem próxima muito pálida quase sem cor. Parecia que ia desmaiar a qualquer momento. Levantei o polegar direito querendo dizer que tudo estava bem. No carro balbuciei-lhe duas palavras de conforto. Meus olhos estavam firmes. Ela fez que sim com a cabeça. Também estava firme.
Do PIC fomos levados para o Ministério do Exército. Entramos no Ministério pela garagem. Subimos por uma escada de madeira até o 2.° andar, onde o DOI-CODI tinha um conjunto de salas. Acho que foi uma ousadia enorme dos torturadores nos torturarem no próprio Ministério. Passamos aí à fase dos interrogatórios. Reafirmávamos a nossa condição de estudantes e de não comprometer ninguém, qualquer que fosse a acusação que fizessem contra nós.
Apesar de durante quase toda a semana sermos levados diariamente do PIC para o Ministério, este foi até um período de recuperação, posto que não havia a selvageria precedente. Inclusive o major Paulo Horta, encarregado do inquérito, respeitou-nos a integridade física. Mostrava-se muito contrariado com a situação e várias vezes tentou manter comigo uma conversa amistosa, confidenciando-me que tinha um filho da mesma idade minha, 22 anos. Na sexta-feira assinamos um depoimento onde negávamos as acusações que nos faziam. Parecisa que a fase mais difícil havia passado... E era apenas o começo.
Na segunda-feira seguinte (16 de outubro), separadamente, novamente fomos levados ao Ministério do Exército. Lá chegando, soubemos que o general Antônio Bandeira, comandante da Brigada da P.E. de Brasília, estava descontente com os resultados do inquérito chefiado pelo major Paulo Horta, ordenando que o caso fosse reaberto. Isto é, mandava torturar-nos novamente. E novamente uma longa noite de terror se fez presente. Dela participaram como mandantes o próprio general Antônio Bandeira, o major Andrade Neto, coronel Azambuja, capitão Magalhães, capitão Menezes, e, especialmente vindo do Rio de Janeiro um torturador chamado Dr. Claudio, tido como especialista em Ação Popular, organização política clandestina à qual acusavam-nos de pertencer.
Durante cinco dias fui novamente submetido a um infernal processo de tortura. Dentro do próprio Ministério do Exército. Desta vez não mais para o pau-de-arara, o afogamento, o choque elétrico, que estes não haviam dado resultado. O que eles pretendiam era minar nossa coragem, nossa disposição de resistir, nossa dignidade. Tudo fizeram: insultavam-nos de pai e mãe desnaturados, que estávamos matando a criança que Hecilda trazia no ventre. Que eu devia pensar na minha mulher, no que ela estava passando. Mostravam-nos telegramas de Belém (falsos, é claro), segundo os quais o pai de Hecilda estava morto e o meu enfartado, à morte por saberem de nossas prisões. E durante cinco dias não houve um único momento de descanso. Não deixavam que nós dormíssemos, através de interrogatórios contínuos. Um atrás do outro, em revezamento de hora em hora, mais de uma centena de torturadores nos inquiriam. Obrigavam-me a ficar horas e horas me arrastando em círculos numa pequena sala, quando não obrigado a fazer movimentos com a cabeça de um lado para o outro. Qualquer momento de paralização era respondido com socos e espancamentos. Através de um vidro, mostravam-me a Hecilda apanhando no rosto e nas pernas, grávida de cinco meses. Nos últimos dois dias os interrogatórios eram feitos com um grande holofote de luz azul, muito intensa, que me cegava. Desmaiei várias vezes, mas sempre que isso acontecia eles me levantavam com amoníaco. Finalmente, na sexta-feira, caí e não me levantei mais. Disseram-me depois que fui levado para uma enfermaria e medicado. Voltei a mim no domingo de tarde dentro de uma cela do PIC.
O impasse estava criado. Eles já tinham esgotado os meios de tortura que era possível nos inflingir em Brasília. E continuávamos afirmando que éramos estudantes que repudiávamos qualquer acusação de terroristas, que não iríamos comprometer ninguém.
Durante uma semana a situação ficou inalterada. Faziam-nos as mais terríveis ameaças, desde a volta pura e simples para a tortura até o puro e simples fuzilamento. Numa ocasião nos foi mostrada uma notícia de nossas mortes, que seria levada aos jornais. Pela sua redação éramos dois terroristas atropelados ao tentarmos fugir de um ponto de encontro. Todavia, uma ameaça era mais constante, a de que seríamos levados para o Rio de Janeiro, onde um verdadeiro Centro Científico de Torturas havia sido montado.
Oito dias depois (a 8 de novembro, segundo o depoimento de Hecilda), essa ameaça se consumou. Acordaram-nos cedinho e levaram-nos para o Aeroporto Militar de Brasília. Lá, um Beech da FAB estava a nossa espera. Quando subi no avião não acreditava em viagens para o Rio de Janeiro. Só me ocorriam duas hipóteses: ou era simplesmente medida para nos atemorizar, ou realmente iriam nos assassinar, jogando-nos lá de cima. Somente quando ouvi o rádio do piloto se comunicando com o Galeão é que passei a acreditar que nosso destino era, de fato, o Rio de Janeiro.
No Rio, a mais trágica experiência. Um grupo de agentes nos recebeu, comunicando pelo rádio que havíamos chegado. Lembro como se fosse hoje: "alô, alô Botafogo, alô alô Botafogo, a mercadoria já chegou." Sob forte pressão emocional - o medo de sermos assassinados aumentava cada vez mais - fomos levados para a P.E. na Barão de Mesquita.
Na Barão de Mesquita conheci o Centro Científico de Torturas de que me falara em Brasília o major Andrade Neto. Baseado num processo que visa, sobretudo, desintegrar as faculdades mentais do torturado é o chamado tratamento psicológico. Tudo é feito de forma a desestruturar a personalidade do preso, submetendo-o a um processo de verdadeiro enlouquecimento. Depois um capitão me explicaria, cinicamente, que lá eles estavam pesquisando os métodos da Santa Inquisição, considerando os métodos da Gestapo ultrapassados. Disse-me ele que os métodos da Gestapo eram dentro de um palco de guerra, onde os acontecimentos se alteravam muito rapidamente com necessidade, portanto, das informações serem arrancadas imediatamente. Por isso, os métodos da Gestapo seriam tão violentos fisicamente, o que provocava muitas mortes. Para eles não. Eles tinham tempo para esperar pelas informações, e dentro desse quadro os métodos da Inquisição ainda eram insuperáveis.
Logo à chegada, eu e Hecilda fomos separados. Pela frente o desconhecido, que haveria de ser terrível, porque senão não nos deslocariam de Brasília para o Rio. Conhecendo a fúria da tortura em Brasília eu me interrogava: o que eles ainda poderiam me fazer, que já não tivessem feito? Pensamentos monstruosos me afligiam, eu que já havia lido o que os nazistas fizeram com mulheres judias grávidas durante a II Grande Guerra. A certeza da morte tomava cada vez mais força. Seria difícil sairmos dali vivos.
Na Barão de Mesquita, eles dividiam a tortura em quatro fases. A primeira, dos longos interrogatórios, com luzes de refletores, ameaças, pressões emocionais, interrompidas sempre por propostas de bom tratamento caso o preso resolvesse colaborar. A segunda, da violência indiscriminada, puramente física, com afogamento, pau-de-arara, choques elétricos, espancamento etc. A terceira, a Câmara do Vietnan ou Paraíso, que atualmente os presos têm chamado de Geladeira. E, finalmente, a quarta, que eu não conheci, que seria um certo "passeio de avião em terra", que geralmente provocaria a morte do torturado. Segundo a filsofia reinante nesse Centro de Torturas, o que não servisse à repressão não deveria servir a mais ninguém.
Eu fora catalogado entre os presos especiais. Fanático, segundo Brasília. Eu, vinte e dois anos, quase um menino, simples estudante, comprometido, é verdade, com a luta democrática, porém sem nenhuma importância maior, senão pela força e disposição de resisitr àquele monstruoso aparelho de repressão.
Na Barão de Mesquita, o DOI-CODI dispensou-me as duas primeiras fases. Tiraram-me as roupas, vestiram-me um pequeno macacão-bermuda e atiraram-me na chamada Câmara do Vietnan. Era um cubículo de mais ou menos 2,00 x 1,0 metros, formado por paredes de um material semelhante ao eucatex, totalmente escuro, dentro do qual não se vê nem a palma da mão. Este cubículo está dentro de um outro maior, de cimento. Lá dentro intercalam-se silêncio total com sons eletrônicos altíssimos, como os de uma sirene fracionada, utilizadas pelas rádios-patrulhas. De instante a instante silêncio e sons, sons e silêncio. Conversando com psicólogos mais tarde, soube que era a utilização de dois estímulos contrários para desordenar mentalmente o indivíduo.
Dentro dessa câmara perde-se completamente a noção do tempo. Em poucas horas não se sabe mais há quanto tempo se está ali dentro.
Não há ponto de referência. Ao mesmo tempo não se pode dormir. Para evitar a escuta dos sons tentei vedar meus ouvidos com um pedaço do macacão. Mas eles estavam fora me vigiando e me tiraram o macacão. Assim nu, sem comer, sem beber, sem poder dormir, ou mesmo fazer qualquer necessidade fisiológica, sob o risco de ser obrigado a engolir qualquer coisa que expelisse, sentindo-me dentro do meu próprio esquife, após três dias (conferi as datas depois), comecei a ter acessos de delírio. Foi a pior experiência que tive. Saber-me ficando louco. Ouvia minha mulher me chamando, meu pai, minha mãe, meus irmãos, na longínqua Belém. De repente caía em mim e percebia que estava tendo delírios. Que ninguém poderia me chamar, porque eu estava enterrado vivo.
Quando entrara na câmara tive um pensamento, que registro textualmente, passados quase sete anos: se me trouxeram de Brasília para o Rio para me colocar aqui dentro, isso eu vou tirar de letra. Na verdade, três dias depois perdi completamente o controle.
Li com atenção, recentemente, a denúncia de Aldo Arantes, que passou também pela mesma câmara, presumo eu, pela descrição que dela ele fez. Diz ele que a câmara procura dar a impressão de que o preso está ficando louco. Talvez tenha sido só isso. Talvez que eu tenha tido só a impressão. Mas o que eles poderiam fazer comigo louco? Era o que mais me assustava. Fui entrando em pânico. Do pânico ao pavor. Pavor de ficar louco. Pavor de não controlar informações que porventura eu tivesse. Pavor de prestar serviço àquela monstruosa máquina. O meu medo era o que eles poderiam fazer comigo louco.
Comecei a tremer. Repetia-me: não vou falar...não vou falar...não vou falar..., indefinidamente, como já num processo de autosugestão. E de repente os sons. Tentava tapar os ouvidos com os dedos, mas era inútil. Aqueles sons infernais, enlouquecedores, penetravam no meu cérebro. Caí em desespero. Parecia não haver saída. O que eles poderiam fazer comigo louco? O medo não era morrer. O medo era ficar louco. O que eles poderiam fazer comigo louco? Cheguei a aceitar a loucura. Repetia-me para mesmo no desvairio resistir, não vou falar...não vou falar...não vou falar... E de repente os sons. Terríveis. Passei a não controlar minhas reações motoras. O corpo tremia, todo. Febre. Frio. Delírios: a Hecilda me chamava, minha mãe me chamava, meu pai me chamava. De repente caía em mim. Ninguém poderia estar me chamando. Eu estava ficando louco. Os sons, o corpo tremendo, a cabeça ardendo.
Perdi o controle. Comecei a bater com a cabeça nas paredes, a gritar desesperadamente. Tirem-me daqui...tirem-me daqui. Foi quando me tiraram daquela câmara.
Sentado numa cadeira cheia de fios elétricos, que prendiam os meus pulsos, cadeira essa que se localizava dentro de um triângulo negro, dentro de uma sala completamente branca, cheia de luzes, dentro da qual o interrogador se colocava numa espécie de púlpito. Tudo cientificamente preparado para o mais completo aniquilamento físico e mental do homem.
Depois do depoimento em que aceitei as acusações que me faziam, e que assinei ao menos sem ler, levaram-me para uma cela, onde havia uma cama. Lá fiquei em posição fetal durante quase uma semana, sem poder dormir, de olhos abertos, olhando o espaço vazio do quarto, ou da vida.
Passados mais alguns dias, levaram-me de volta para Brasília. A Hecilda não poderia ainda embarcar, porque não passava bem, com ameaça de aborto, e a viagem poderia complicar ainda mais a sua situação de saúde. Dez dias depois, mais ou menos, permitiram-nos que nos víssemos rapidamente no parlatório. Soube dos maus pedaços pelos quais também ela havia passado. As torturas, todavia, não passariam.
Passei a viver o dia a dia do PIC. O PIC não é uma penitenciária comum, em que o preso fica sob o controle da Justiça. É um pequeno campo de concentração. Ali quem manda é o comandante. Justiça é letra morta. A lei, diziam eles, é para ser cumprida, todavia era necessário deixar de cumpri-la por alguns momentos. Chamávamos a isso a vacancio legis do PIC.
Ali conheci, creio, toda a crueldade que o gênero humano pode produzir. Durante dez meses fui testemunha dos mais escabrosos crimes contra mulheres, homens, velhos, rapazolas, que o aparelho de repressão tem cometido no Brasil. Dentre, talvez, mais de uma centena de presos políticos que conheci nesses meses, não houve nenhum, mas nenhum mesmo, que não houvesse sido torturado. Tortura era o método mais sistemático empregado no PIC para obter confissões. Todos eram torturados: simples suspeitos, simpatizantes da causa democrática e, principalmente, militantes das organizações clandestinas. Entre os principais torturadores do PIC estavam o tenente Burguer, o major Othon Rego Monteiro, o sargento Ribeiro, o sargento Vasconcelos, Arthur, os cabos Martins, Jamito, Edson Torrezan, Nazareno, Calegari, soldado Osmael, Admir.
A princípio, eles ainda possuíam o pudor de colocar o rádio em volume altíssimo, para não ouvirmos os gritos que vinham da salinha. Depois não. Torturavam às escâncaras, notadamente depois que foi comandar o PIC esse tenente Burguer, sob direção do major Othon Rego Monteiro, dois fascistas torturadores dos mais perversos. Mesmo os que já tinham passado pela fase do interrogatório, e estavam somente esperando julgamento, eram provocados e torturados.
Esse major Othon Rego Monteiro mandou, certo dia, buscar-me na cela. Disse-me que nós estávamos tendo muitas concessões. Que ele iria apertar nossas vidas, para ver quem eram os rebeldes. Essas concessões eram banho de sol, livros, um rádio, jogo de xadrez, enfim, essas coisas pequenas, e sobretudo linha, agulhas e miçangas, com as quais fazíamos artesanatos para ajudar as famílias dos operários presos que passavam dificuldades. E assim o fez. Só que para ele até escova de dente virou concessão. Tirou-nos tudo. Não poderíamos nem cantar, nem ao menos assoviar. Nem a Bíblia poderíamos ler. Fui trancafiado numa cela em penumbra, onde fiquei quase três meses isolado.
Em abril (de 1972) um torturador, que se dizia do Ciex, mas que soube pertencer ao Cenimar, tentou me matar. Fazia pouco tempo que tínhamos dado o nosso depoimento na Auditoria Militar. Nele havíamos denunciado o processo de torturas a que éramos submetidos, inclusive com o nome de torturadores, que eram nossos carcereiros, o que provocou-lhe ainda ódio maior.
Foi quando, devido a uma prisão ocorrida em São Paulo, eles verificaram que eu os tinha logrado em muita coisa no Rio, mesmo depois da câmara, sonegando-lhes informações, principalmente a respeito de tudo o que se referisse a atividades políticas estudantis em Belém. Sabia que bastaria dizer que conhecia alguém para que essa pessoa caísse sob suspeitas, podendo até ser presa. O fichário do DOI-CODI é tipicamente fascista. Qualquer pessoa de idéias democráticas, liberais ou progressistas é tida como comunista. Entre os que me foram perguntados, por exemplo, e que estão fichados pelo DOI-CODI, estavam os professores Aldebaro Klautau e Paulo Mendes. O Sérgio Couto, hoje dono de imobiliária. O deputado arenista Plínio Pinheiro Neto etc... Embora eu os conhecesse perfeitamente - o Paulo Mendes fora até meu professor na Escola de Teatro, o Plínio meu colega de Faculdade. Um parêntese, o Plínio está fichado porque foi ameaçado de um processo de 477 na Faculdade de Direito, porque com mais oito colegas havia participado de um trote violento na calourada de 1969, que a Diretoria da Faculdade havia considerado danoso ao patrimônio universitário. O DOI-CODI só sabia da ameaça do 477. E se ele estava ameaçado de 477 deveria ser mais um comunista infiltrado na Universidade.
Bem, embora eu os conhecesse perfeitamente, entre outros, neguei, procurando não comprometer ninguém, além dos naturalmente comprometidos pelo material do próprio inquérito. E quando dessa prisão em São Paulo, veio à luz minha participação política no Movimento Estudantil de 1968 e 1969, aqui em Belém. O pessoal do DOI-CODI ficou então furioso.
Juntaram-se aí duas coisas: nosso depoimento na Auditoria e um certo logro que, mesmo nas condições difíceis do Rio de Janeiro, eu havia lhes aplicado. Foi quando esse torturador tentou me matar. Não por simples sentimento de vingança. Ele queria saber o nome de uma pessoa possivelmente paraense que estaria envolvida na Guerrilha do Araguaia. Mas, talvez de todas as pessoas que ele declinava, e que eu, por uma questão de princípios, negava conhecer, esse fosse justamente o único que eu realmente não conhecia. Com ele sabia que eu não deschonhecia os nomes precedentes, e que os negava conhecer, ele não acreditava que eu não conhecesse o nome da pessoa que ele queria.
Então mais uma vez a tortura desabou, e desta vez tão furiosamente que terminaria pela tentativa dele me assassinar. Ameaça de estupro da Hecilda, que havia em fevereiro dado a luz ao nosso filho. Choque elétrico, pau-de-arara, afogamento etc... No auge da sua histeria, esse torturador, que se gabava de não ter escrúpulos, avançou para mim, dizendo que ia me matar. Eu estava de joelhos no chão, com as mão amarradas ao calcanhar. Ele pegou um cassetete, desses de choque de rua, com mais de um metro, e deu-me com ele, com toda a sua força, com as duas mãos, na cabeça, endereçando a pancada à base do crânio. Minha sorte foi que no exato momento da pancada levantei a cabeça, sendo atingido logo acima da testa, o que "apenas" ocasionou a fratura do osso, sem as conseqüências da morte. Depois esse mesmo torturador foi me acusar de tê-lo feito perder a paciência.
Fui julgado e condenado, numa verdadeira farsa, a um ano e oito meses de prisão. A Hecilda foi condenada a um ano. Por mais que eles pretendessem, não conseguiram acusar-nos de terroristas. As ações que teriam configurado meus delitos foram meia dúzia de reuniões vinculadas à Ação Popular Marxista Leninista do Brasil, uma panfletagem dentro da UnB contra o governo, uma pichação em Brasília contra a pena de morte e a tentativa de reorganizar a União Nacional dos Estudantes na Universidade de Brasília.
Vimos cumprir o resto da pena em Belém, onde ficamos inicialmente na Cadeia Pública de São José. Posteriormente, com a Hecilda já em liberdade, fui transferido para o Batalhão de Guardas da Polícia militar da Gaspar Viana, onde cumpri minha pena até o último dia. Durante três a quatro anos fui perseguido por pesadelos noturnos. Mas, como diz o verso de Paulo César Pinheiro: Eles me prendem vivo, eu escapo morto.
Luiz Maklouf Carvalho confirma o relato de Paulo Fonteles em todos os detalhes. Só as datas não são sempre totalmente corretas. Testemunhas confirmam, aliás, que o fato de Paulo Fonteles ter conseguido reter suas informações durante meses, fez com que vários membros importantes da APML que estavam na clandestinidade conseguissem fugir.
No total, Paulo Fonteles e sua esposa Hecilda Veiga estiveram oito meses na prisão, antes de serem formalmente acusados a 16 de junho de 1972. O processo aconteceu a 17 de julho do mesmo ano. Paulo Fonteles foi condenado a um ano e oito meses, Hecilda a um ano de prisão. O tempo da prisão ilegal não foi levado em conta. O juizes não consideraram as denúncias de tortura, apresentadas pelos advogados do casal.
Mas é depois da prisão que a vida de Paulo Fonteles chamou a atenção pública. Como advogado e membro do Partido Comunista do Brasil (PC do B), Paulo se engajou, a partir de 1979, na luta dos posseiros no sul do Pará, justamente na região do Araguaia. Os latifundiários usavam das ferramentas do terror para expulsá-los, cometendo assassinatos e ameaçando as pessoas. Sobretudo a tática de esperar até os posseiros terem cultivado a floresta para então apresentar documentos de propriedade falsificados - a chamada grilhagem - causava muita violência. Ao longo dos anos 80, Paulo Fonteles viajava cada vez mais ao sul do Pará. Aos poucos, conseguiu ganhar a confiança dos posseiros, defendendo seus interesses nos tribunais. Ao mesmo tempo, era deputado estadual do PC do B.
Quando ele descobriu um caso de corrupção com personagens importantes da região envolvidas, Paulo manifestou suas acusações no parlamento. A partir desse momento, ele virou incômodo demais. No dia 11 de junho de 1987, Paulo Fonteles morreu no banco traseiro de um carro. O assassino, um ex-membro da polícia militar, tinha disparado três vezes contra ele, atingindo sua cabeça de muito perto. Os mandantes do atentado nunca foram julgados. O enterro em Belém virou uma manifestação popular contra o crime organizado dos latifundiários.

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“Este é tempo de divisas, tempo de gente cortada. É tempo de meio silêncio, de boca gelada e murmúrio, palavra indireta, aviso na esquina.”
Carlos Drumond de Andrade