sábado, 12 de novembro de 2011

Dossiê Araguaia - Parte IV

Via Paulo Fonteles Filho

Foi nos porões do Pelotão de Investigações Criminais (PIC), em Brasília, meados de 1972, que Paulo Fonteles e sua esposa Hecilda Veiga tomaram conhecimento da guerrilha no Sul do Pará.
Ante o grito das torturas e a canção "Esses moços, pobres moços" de Lupicínio Rodrigues - usada para abafar a tormenta dos calabouços, método considerado ideal para as bestas-feras da Gestapo tupiniquim- foi que rapidamente correu entre os presos políticos, através de formas que só eles conheciam da presença de vários camponeses presos na região do Bico-do-Papagaio.
Tais prisões expressaram a primeira Campanha de Cerco e Aniquilamento das Forças Armadas naquela remota região, numa das últimas frentes de expansão da sociedade brasileira para combater, segundo afirmaria anos depois o General Viana Moog "a maior rebelião armada do Brasil rural".
A emoção de saber da insurgência no Pará, justamente em seu estado natal, tomou conta do coração e da consciência do jovem preso. Artesão da esperança buscava infundir através de canções, junto a seus companheiros de desterro as composições do espírito popular que manifestavam a brasilidade central, mesmo diante da cancela e das privações. Ainda, como o triunfo da vitalidade da consciência, entoavam todos a canção mundial dos trabalhadores: A Internacional.
Havia, ainda, as poesias populares para as manhãs vermelhas, para a mulher grávida e torturada, para antecipar o futuro, para a liberdade fugidia. Poesias populares deste Brasil profundo e visceral.
Assim, na aguda noite alimentada pelos feitos araguaianos, pelo exemplo heróico da figura de Zé Porfírio, dirigente de Trombas e Formoso, ingressa o jovem preso no partido da guerrilha, o Partido Comunista do Brasil.
Sobrevivente das masmorras tenebrosas do estado terrorista implantado pelos generais, Paulo Fonteles é enquadrado pelo espúrio artigo 477, obra do então Ministro da Educação Jarbas Passarinho. Além de Fonteles, Hecilda Veiga, Humberto e Isa Cunha foram os únicos paraenses enquadrados por aquele instituto que proibia, por três anos, que estudantes acusados de subversão pudessem ter de volta o direito de estudar.
Ao retomar o direito de frenquentar a universidade logo torna-se advogado e apartir de 1977 têm sua atividade vinculada à Comissão Pastoral da Terra (CPT) para a defesa dos interesses dos camponeses e pequenos agricultores do Baixo-Araguaia. Tudo isso fora reforçada pela experiência do conflito da Fazenda Capaz cujo convite recebeu do também advogado e poeta Ruy Barata.
Estava em curso no país a luta pela Anistia e iniciava-se no ABC paulista a fundamental jornada de 1978/1980 que reapresentou para o Brasil a força pujante da classe operária e revelou para a cena política brasileira a figura combativa do metalúrgico Luís Inácio Lula da Silva.
A ditadura militar que aprofundou a subordinação do país aos interesses do imperialismo, particularmente norte-americano e eliminou arbitrariamente as limitadas conquistas sociais e democráticas assistia atônita o reforçamento de um movimento libertário de massas que desaguaria, anos depois, nas febris multidões que nas praças e nas ruas, em 1984, exigiam Diretas-Já.
O fato é que a partir da segunda metade da década de 1970, derrotada fragorosamente nas urnas nas eleições de 1974 pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), legenda que abrigava parcelas significativas das forças oposicionistas do regime, a mais elevada e reacionária oficialidade militar não conseguia esconder a preocupação de que exemplos como os ocorridos em selvas paraenses pudessem ressurgir, inclusive na própria região deflagrada.
Os donos do poder de então tinham plena consciência dos prejuízos que as Forças Guerrilheiras do Araguaia tinham perpetrado contra o regime e não foi por obra do acaso a tristemente famosa Chacina da Lapa que liquidou parte expressiva da direção do PCdoBrasil, entre eles Pedro Pomar e Ângelo Arroyo, em 1976.
Nas circunstâncias das comemorações do Ano Internacional da Mulher, em 1975, o estado repressivo não conseguiu coibir que um pequeno grupo de mulheres lançasse o primeiro Manifesto pela Anistia e o Movimento Feminino pela Anistia e Liberdades Democráticas (MFPA).
A bandeira da Anistia Ampla, Geral e Irrestrita foi como um vento que articulou os setores democráticos da sociedade brasileira até então sufocada pelos grilhões do despotismo militar. Diante de tal situação os presos políticos se levantaram nos presídios e o cárcere, de certa forma, tornou-se um importante centro irradiador de agitação pelas liberdades democráticas e pelo fim do estado de arbitrío.
Muitas informações da luta armada no Brasil, principalmente do Araguaia tornaram-se públicas apartir dos relatos dos presos políticos o que ampliou o impacto das informações para fora da prisão e ensejavam a organização dos que lutavam por liberdade e democracia. Figuras de proa da vida pública brasileira de então, como Teotônio Vilela deram grande visibilidade aos clamores dos desterrados.
O fato é que o MFPA desaguou na criação do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) o que representou a elevação da luta democrática no Brasil. Mesmo com a promulgação da limitada Lei de Anistia, no dia 29 de Agosto de 1979, o regime não pode segurar a radicalização daquele processo que anunciava a consigna do esclarecimento do paradeiro dos desaparecidos do regime.
Os setores democráticos da sociedade brasileira e, inclusos aí os familiares dos desaparecidos políticos passam a se organizar e realizam protestos e congressos cuja centralidade era a obtenção de esclarecimentos do governo federal, travando também a necessária luta política para desgastar a ditadura.
O caminho trilhado foi tornar público para a sociedade brasileira os motivos pela qual milhares de brasileiros se lançaram a mais dura e encarniçada luta contra o regime. No contencioso contra o regime, diversas entidades profissionais se destacavam dentre elas podemos citar a Associação Brasileira da Imprensa (ABI) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Em novembro de 1979 é realizado em Salvador-Ba o II Congresso Nacional pela Anistia (o primeiro fora realizado pelos exilados em Roma, em junho de 1979) e é lançado o Manifesto dos Familiares dos Mortos e Desaparecidos do Araguaia, num esforço extraordinário para reunir alguns familiares dos combatentes que tombaram nas matas paraenses.
Fora um trabalho duro e intenso de pesquisa. Era imprescindível relacionar os nomes da totalidade dos guerrilheiros, mesmo não sendo possível até aquele momento o conhecimento dos nomes e endereços dos familiares por conta do fato de que os guerrilheiros eram oriundos de diversas partes do Brasil além do estado repressivo que vigorava no país.
Um outro fator decisivo para a obtenção das informações, além daquelas prestadas pelos que foram aprisionados na primeira Campanha de Cerco e Aniquilamento, foram os relatos de dirigentes do PCdoBrasil que retornavam do exílio.
Em certa medida as informações sobre a guerrilha criaram um ambiente de fascínio pela bravura daqueles que ficaram conhecidos como "povo da mata". Uma farta literatura passou a ser confeccionada e a cada nova informação crescia e até os nossos dias cresce a curiosidade acerca dos acontecimentos nas selvas paraenses.
No comovente Manifesto do II Congresso Nacional pela Anistia que aqui transcrevo, num trecho significativo, revela-se a fibra que é inerente ao povo brasileiro:
"A nós familiares, através dos Comitês Brasileiros pela Anistia, cabemos o dever sagrado de esclarecer aos presentes de forma concisa e clara o que foi a Guerra do Araguaia, essa guerra que o regime militar faz absoluta questão de manter em segredo e procura a todo custo impedir que qualquer informação a esse respeito chegue ao conhecimento do povo brasileiro:
A partir de 1967 várias pessoas deixaram seus lares, suas faculdades, seus empregos em vários pontos do Brasil, para passarem a residir na região do Araguaia, onde a população vivia e vive até hoje na mais completa miséria. Começaram, então, a desenvolver um trabalho junto ao povo, de assistência e conscientização das causas dos seus mais angustiantes problemas e organizando-os no sentido de resistirem e lutarem contra aqueles que os exploravam, contra aqueles que os expulsavam de suas terras e contra as adversidades inerentes à vida do campo.
Mas, infelizmente, foram descobertos cedo demais pelas forças do regime militar em abril de 1972, que caíram com todas as suas garras assassinas e terroristas sobre esses rapazes e moças, e também, sobre a população camponesa local. A única alternativa foi resistir ao ataque monstruoso das forças combinadas do Exército, Marinha, Aeronáutica e Policias Militares locais, pois se se deixassem aprisionar, fatalmente seriam torturados até a morte como foram alguns que caíram em suas mãos. É imperioso ressaltar que as forças guerrilheiras do Araguaia conseguiram, nas duas primeiras campanhas desferidas pelas Forças Armadas, vitórias significativas, provocando às forças inimigas sérios revezes. Entretanto, entre a segunda e a terceira campanha houve uma trégua de cerca de um ano, em cujo período os guerrilheiros poderiam escapar, mas, para certamente não deixarem os camponeses entregues à própria sorte, decidiram ficar na região e como diz o final do Regulamento dos Guerrilheiros: "É hora da decisão, de acabar para sempre com o abandono em que vive o interior e por fim nos incontáveis sofrimentos de milhões de brasileiros abandonados, humilhados e explorados. A revolução abrirá caminho para uma vida nova. Até hoje, o povo foi tratado como escravo. Chegou o momento de levantar-se para varrer os inimigos da liberdade, da indepêndencia e do progresso do Brasil".
Entretanto, desgraçadamente, no transcorrer da terceira campanha, as Forças Armadas, que utilizaram durante as três campanhas um contingente de tropas, segundo declaração de um comandante militar, semelhante ao da Força Expedicionária Brasileira (FEB) nos campos de batalha da Itália, isto é, cerca de 20 mil homens, se valendo das mais sofisticadas armas de guerra, inclusive com assessoramento de oficiais portugueses com experiência de guerrilhas nas colônias de Portugal na África, conseguiram, finalmente, aniquilar bandidescamente e covardemente os nossos entes queridos. Mas como está transcrito no livro "Diário da Guerrilha do Araguaia" prefaciado por Clóvis Moura: "Filhos queridos do povo, patriotas da melhor estirpe, ousam desafiar as dificuldades, os revezes e os sacrifícios com o pensamento voltado para o Brasil livre do despotismo. Conquistam o respeito e admirtação das grandes massas populares. Viverão no coração de todos que amam a liberdade e odeiam a opressão. Seus nomes permanecerão eternamente gravados na memória de coragem e dignidade que erigiram com seu devotamento à causa do povo, com seu sangue e suas vidas".
O documento dos familiares enumera, ainda, todos os combatentes, incluindo os camponeses que pegaram em armas e é concluído com o seguinte senso de responsabilidade:
"É nosso dever tornar público o que nossos filhos, irmãos, pais, enfim, nossos entes queridos sofreram nessa luta tremendamente desigual, mas que mesmo assim souberam resistir com bravura e heroísmo até as suas forças, à sanha fascista da ditadura. Muitos, ou quase todos morreram, porém tombaram mantendo erguida a bandeira por melhores condições de vida pela liberdade do povo brasileiro e cabe a nós tomarmos nas mãos esta bandeira e prosseguir na luta que esses homens e mulheres, nossos compatriotas iniciaram, e elevar aos mais altos níveis a memória destes heróis do nosso povo".
Fundamentados pelo relatório oficial pelo Ministério da Guerra, de 5 de Janeiro de 1975 é que os familiares em 1982 constituem o advogado Luís Eduardo Greenhalgh e é ajuizada ação contra a união buscando a indicação das sepulturas de seus parentes, a lavratura dos atestados de óbito e o traslado dos despojos mortais para um sepultamento digno. Em 2007, vinte e cinco anos depois é que o resultado é prolatado favoravelmente aos familiares dos mortos e desaparecidos do Araguaia.

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Carlos Drumond de Andrade