quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Guerra dos Perdidos


Por Leonêncio Nossa

Posseiros que deram apoio à guerrilha se levantaram contra o Incra


Documentos obtidos pelo Estado no Arquivo Nacional, em Brasília, revelam que a ditadura se assustou com a nova guerrilha no Araguaia e admitiu que o movimento tinha causas justas. Os mesmos moradores que serviram de apoio à guerrilha do PCdoB organizaram uma revolta contra o Incra, que, inflamado por grileiros, decidiu refazer a ocupação na área, deslocando posseiros. Por trás de ações de despejo estava o grileiro Luiz Erland, o Careca, que chegou aos Caianos após o extermínio da guerrilha.

O agricultor João de Deus, que tinha sido peão de um sítio de guerrilheiros, relata que a primeira reunião dos rebeldes dos Perdidos ocorreu na casa de Sebastião da Serra. Os cunhados de João de Deus, Davi e Joel dos Perdidos, assumiram a liderança do movimento, que brotava onde existiu um dos destacamentos da guerrilha.

Os posseiros se reuniram depois numa cabana de palha que abrigou a escolinha da guerrilheira Áurea Valadão, executada em 1974 pelo Exército. Pelas contas de Davi, 173 homens participaram do encontro. Eles decidiram interromper o trabalho de remarcação de lotes. À meia-noite de 26 de outubro de 1976, hora combinada para o início da marcha até a picada onde estavam os funcionários do Incra, apenas 36 posseiros apareceram. Dois traíram o movimento e avisaram à polícia do plano de ataque, que começaria pela manhã. Os posseiros mudaram a estratégia: se dividiram em três grupos de 12 e ficaram afastados do local previsto para o ataque. Lá, camuflados e agachados na mata, contaram 26 policiais e 8 pistoleiros.

Às cinco da manhã, a polícia percebeu movimentos no mato e fez os primeiros disparos. Quando cessaram os tiros, os posseiros se levantaram e atacaram. Um policial caiu morto. "Um deles levou um tiro no pé de ouvido de uma "por fora" (espingarda), que a gente carrega pela boca, aquela venenosa", relata Davi. "Morreram quatro. Outros saíram correndo, mais à frente um caiu", diz. "A turma foi devagarinho; ele estava para se levantar quando tiramos o infeliz do sofrimento, como faziam com a gente, né? O cara pegava um pedaço de pau e batia na cabeça dos caídos, para sair do sofrimento. Morreu muito pistoleiro na picada", acrescenta Davi.

Relatório militar confirma as mortes dos soldados Claudiomiro Rodrigues e Ezio Araújo. O documento "Incidente em São Geraldo do Araguaia", do extinto Serviço Nacional de Informações, destaca que o Exército reconhecia a truculência da PM e foi acusado de atuar em parceria com policiais corruptos.

Após o confronto, policiais cercaram povoados em busca dos revoltosos, retirando famílias à força. Um vizinho de Davi, Deusdeth Dantas, o Deti, e dois filhos foram amarrados dentro de casa. Os policiais bateram na mulher dele e violentaram duas filhas menores, de 12 e 13 anos.

Davi foi preso. "Fiquei um mês trancado numa cela. Me deram choques na língua, botavam fio elétrico na orelha e no cotovelo, você cai morto, não vê nada. Meus dentes quebraram tudo", lembra. "Me perguntaram de coisas que eu não sabia que existia no mundo." Diz que valeu a pena. "Foi a primeira vez que gente pobre brigou com gente rica e ganhou. Antes não tinha MST, era só a gente. Foi uma guerrilha sofrida, mas vitoriosa. Naquele momento não morreu posseiro. Balançou o governo. Eles não tinham ordem para me prender. Tinham ordem para me matar."

Veterano de dez garimpos, o cearense Jacob Silva, 80 anos, nascido no sertão dos Inhamuns, chegou aos Perdidos em 1963. Viu a guerrilha do Araguaia ser eliminada e garimpos serem abertos e entrarem em decadência. Jacob lembra que a revolta nos Perdidos começou com a chegada de grileiros. O governo abriu uma estrada e deu início a uma nova redistribuição de lotes, que não contemplaria as famílias que estavam na área. "Foi um confusãozinha até boa; a gente gosta é de um fuá", diz rindo.

A principal personagem feminina dos Perdidos tem o mesmo apelido da mais famosa integrante da guerrilha do Araguaia. Dina, como é chamada Edna Rodrigues de Souza, de 60 anos, passou pela tortura em 1976, como a guerrilheira Dinalva Teixeira, do Araguaia, dois anos antes. Militares espalharam que elas eram irmãs.

Tortura. Em três ocasiões, Edna sofreu choques elétricos e abuso sexual de agentes encapuzados. A primeira foi na beira do Araguaia, onde foi presa. Após quatro meses, foi solta. Estava grávida. O marido, João de Deus, ajudou a criar a filha dela, Eva. A relação entre Edna e João acabou. "Ele não chorou. Eu não chorei, já esperava por aquele dia", conta. "Mas ele podia ter me perdoado, porque também foi algemado. João sabe que não foi o meu querer. Arrumou um montão de mulheres, mas até hoje nenhuma igual a mim."

Se Dina do Araguaia é hoje um mito, a ponto de agricultores acreditarem que ela não morreu, a homônima dos Perdidos está bem viva. Dina dos Perdidos mora numa casa de tábua coberta de palha à beira da BR-153, na Vila Bandinha, em São Geraldo do Araguaia. Com o atual marido, Carlos, vive da venda de picolés e bebidas. A renda é de R$ 400 por mês.

Quando o Estado chegou à Vila Bandinha, Edna ou Dina dos Perdidos não estava. Tinha ido a São Geraldo para um ritual que faz há anos: tentar convencer o INSS de que tem direito à aposentadoria. Depois de desembarcar de um pau de arara, ela mostrou a carteira de trabalho, marcada por um "cancelado" em vermelho. O envolvimento na revolta foi o suficiente para perder o emprego numa escola municipal, onde dava aulas para 115 crianças.

Ela escreve as memórias dos Perdidos. Não permite imagens dos cadernos preenchidos com letra arredondada. O advogado Paulo Fonteles, que a defendeu, assassinado em 1986, terá destaque no livro. "Ele será o anjo, o ser que queria só paz na terra de pistoleiros, guerrilheiros e posseiros", adianta.

Nos cabarés e bodegas, o forró perde espaço para o pop melody e o melody. São ritmos mais rápidos que o brega da banda Calypso. Agora, o rapaz apenas segura a mão da moça, sem colar no corpo dela. Faz sucesso por aqui o cabelo moicano, no estilo do jogador Neymar, e roupas justas e coloridas. Os jovens ouvem CDs piratas das bandas Raveli, Vetron, Tupinambá, Rubi e Águia e acessam blogs e sites para ver ofertas de emprego. O sonho é conseguir vaga numa mina da Vale. A qualificação é o empecilho. Parte da garotada se esforça para ser aceita como recruta nos quartéis construídos pelo Exército no tempo da guerrilha.

Não há mais guerrilha. O mundo dos Perdidos é outro. As procissões luminosas deram espaço para rodeios e vaquejadas, o boi tomou conta da floresta, os carros da Vale acabaram com a monotonia nas estradas de chão e barracos foram construídos nos barrancos do rio para abrigar migrantes que continuam chegando do Maranhão a cada anúncio de investimentos da companhia.

Mesmo com as mudanças e influências externas, a Amazônia aqui continua tendo apenas duas estações: verão e inverno. O verão ainda é associado ao tempo de bonança, embora o Araguaia, o Tocantins e o Itacaiúnas não garantam peixes como no passado. A formação das praias e o movimento dos jovens com suas caixas de isopor e rádios para tocar melody mantêm o clima alegre na estação. O inverno continua sendo visto como o tempo sombrio, de rio cheio, sem festa.

Fonte:
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20101219/not_imp655609,0.php

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“Este é tempo de divisas, tempo de gente cortada. É tempo de meio silêncio, de boca gelada e murmúrio, palavra indireta, aviso na esquina.”
Carlos Drumond de Andrade