Ex-ditador falou da Copa de 78, do papel da igreja católica no período e criticou governo dos Kirchner
O ex-general Jorge Rafael Videla, primeiro presidente da última ditadura militar argentina (1976-1983), condenado à prisão perpétua por inúmeros crimes contra os Direitos Humanos cometidos no período, afirmou à revista espanhola Cambio 16 que em seu país “não há justiça”, mas sim “vingança”.
Em entrevista concedida na prisão da base aérea Campo de Mayo, após o pedido de liberdade condicional e unificação das penas ditadas em diferentes julgamentos aos quais foi ou está sendo submetido, o ex-ditador se definiu como “preso político”, e criticou os governos de Néstor e Cristina Kirchner que, segundo ele, atuam com “um espírito de revanche absoluta”.
Segundo Videla, apesar do julgamento contra a cúpula militar da ditadura, em 1985, no governo de Raúl Alfonsín, o pior momento foi com a chegada dos Kirchner. “Tem havido uma assimetria completa no tratamento das duas partes enfrentadas no conflito. Fomos apontamos como os responsáveis, nem mais nem menos, de acontecimentos que não desencadeamos”, afirmou.
Para ele, o “matrimônio Kirchner” retomou os assuntos dos anos 1970, para “cobrar o que não puderam cobrar naquela década”, quando eram “burocratas que distribuíam panfletos e não mataram nenhuma mosca”. Sobre os julgamentos aos militares que não teriam se excedido, afirma serem de caráter político “como parte desta vingança, desta revanche” para punir as Forças Armadas.
Para ele, os julgamentos aos repressores se enquadram em um plano de “política gramsciana, que estas pessoas cumprem de ponta a ponta, dissuadindo instituições que tomaram como reféns, criando desaparecidos que nunca existiram”, diz, afirmando que a justiça argentina está “morta, paralisada”.
Na entrevista, Videla revisa os antecedentes que desencadearam o golpe militar de março de 1976 contra María Estela Martínez de Perón. Em um discurso parecido ao de suas defesas feitas nos tribunais durante diversos julgamentos, no qual contextualiza o início de seu regime em uma situação de “guerra contra o terrorismo”, o ex-ditador diz que a “intervenção” se justificava pelos “extremos” aos que o país havia chegado.
“Faltava uma medida de força e as pessoas compartilhavam esta visão. Se nós não tivéssemos feito, o vazio de poder ia ser aproveitado pela subversão para chegar ao poder e ocupar todo o espaço deixado por outros. Simples assim. Ou tomávamos o poder ou a subversão seria feita pela via das armas com as instituições. Tínhamos planos, métodos para o combate ao terrorismo, podíamos enfrentá-los e assim fizemos”, alega.
O ex-ditador afirmou ainda que a comunidade internacional era favorável ao golpe, mas que depois, principalmente os países europeus, mostraram “desconhecer a realidade argentina”, associando o regime com “sua forma de autoritarismo”, como o fascismo e o nazismo. “Queriam nos medir com essa vara e nós não tínhamos nada a ver com tudo isso, obviamente. Foi muito difícil ter que melhorar essa imagem errada que tinham de nós”, diz.
Copa do Mundo
Sobre a Copa do Mundo de 1978, ganha pela Argentina em pleno regime militar, Videla se mostrou orgulhoso pela “capacidade de organização” de seu país para receber o evento, que teria sido organizado em apenas dois anos, criticando os governos peronistas anteriores ao regime, “que nada fizeram”, mesmo sabendo que sediariam o campeonato.
O ex-ditador não se referiu, no entanto, às recentes investigações levadas a cabo pelo juiz argentino Norberto Oyarbide, que aportam novas evidências à suspeita de que a goleada de 6 a 0 que classificou a Argentina e eliminou o Brasil do mundial foi fruto de um acordo feito entre as ditaduras militares dos dois países, indicando a participação da ditadura peruana na Operação Condor.
Por outro lado, o militar criticou uma reportagem publicada na época pelo jornal francês Le Monde que denunciava que, em plena Copa do Mundo, argentinos estavam sendo fuzilados nas cercanias do estádio de futebol do Clube Atlético River Plate, localizado a poucos quarteirões da ESMA (Escola Superior de Mecânica da Armada), principal centro-clandestino de prisão e extermínio de Buenos Aires, na época da ditadura.
O ex-general qualificou as informações de “aberrantes, tendenciosas” e afirmou que o jornalista queria denegrir a ditadura “a qualquer custo” e “imaginou” que os “disparos que soavam nos arredores do estádio” eram “balas dirigidas a um pelotão de pessoas fuziladas”, que seriam sons de treinamento da associação de tiros da Argentina. “Nos atacavam injustamente, estávamos em uma guerra para explicar o que acontecia no país, diante de dados e notícias caluniosas”, defende-se.
Desaparecidos
Apesar de esta não ter sido a primeira entrevista concedida pelo ex-ditador desde seu translado a esta unidade penitenciária em 2008, após anos anistiado e, posteriormente, beneficiado pelo regime de prisão domiciliar, esta foi certamente a que gerou mais reações por parte de organismos de direitos humanos que pedem justiça pelos crimes cometidos nos anos de terrorismo de Estado.
Quando questionado sobre a cifra de argentinos desaparecidos nos anos de chumbo, estimada em 30 mil pessoas pelas organizações de Direitos Humanos do país, Videla afirma que “há uma grande disparidade”, o que afeta a credibilidade do número “que tentam fazer-nos acreditar”. Segundo ele, o dado é extremista quando comparado com o de “sete mil contabilizados por outras comissões”.
“Assistimos a uma clara manipulação no assunto dos desaparecidos, tentavam alterar as cifras com uma intenção política ou com o interesse de conseguir fraudulentamente uma indenização do Estado argentino”, disse Videla, alegando que somente sete mil pessoas apresentaram pedidos de ressarcimento econômico, cuja cifra “não era desprezível”. “Como é possível que 23 mil pessoas renunciassem a esta ajuda?”, perguntou ao jornalista.
O ex-general, que sempre negou a figura do “desaparecido”, utilizou o termo “supostos” para descrevê-los, justificando que “em toda guerra há mortos, feridos, lesionados e desaparecidos”. “O problema”, diz, “é que o desaparecido não se sabe onde está, não temos resposta para esta questão, no entanto, sabemos quem morreu e em quais circunstâncias”, diz ele, complementando que os militares aceitaram o termo para encobrir outras realidades, mas que este “foi um erro” pelo qual ainda pagam.
Reação
Não tardou para que organizações de Direitos Humanos repudiassem publicamente as declarações do ex-ditador. Em comunicado emitido na última quarta-feira (15/02), a associação H.I.J.O.S. (Filhos pela Identidade e Justiça, contra o esquecimento e o silêncio) pergunta: “Se sabem [quem morreu e em quais circunstâncias], nós, familiares das vítimas do genocídio, queremos perguntar-lhes: O que fizeram com nossos pais e mães? Onde estão seus corpos? Quem se apropriou de nossos irmãos nascidos em cativeiro?”.
Para eles, tanto Videla “como todos os responsáveis do terrorismo de Estado sabem, mas demonstrando novamente sua covardia e falta de dignidade, se calam e mantêm o pacto de silêncio”. A organização critica a entrevista realizada pelo jornalista da publicação espanhola, Ricardo Angoso, “que deixa o genocida cômodo em uma entrevista que mais parece uma justificação dos crimes e uma apologia da impunidade do que um compromisso com a verdade e a justiça”.
A organização repudia ainda as declarações de Videla, de que “não existe Justiça na Argentina, mas sim vingança”, afirmando que ele, como os demais militares condenados “têm todos os direitos e garantias que não nossos pais e companheiros não tiveram. [Videla] não sofre nenhuma das violações aos Direitos Humanos que ele cometeu”.
O comunicado diz que vingança, por definição, “seria roubar seus filhos, sequestrá-los, torturá-los, violá-los, tê-los em cativeiro em centros clandestinos, jogá-los vivos no mar, roubar seus bens, fuzilá-los”. “Nunca fizemos nada disso, nem faremos, nunca demos um passo que possa ser considerado vingança”, explica.
Mães da Praça de Maio
Por sua vez, a integrante da linha fundadora da associação Mães da Praça de Maio afirmou que as declarações de Videla são a prova que do ódio dos repressores aos ativistas de direitos humanos. “Eles não imaginaram nunca que a justiça legal chegaria a eles, [que estavam] acostumados a serem os donos da vida e da morte”, disse, dizendo que as mães de desaparecidos “nunca se vingaram”.
“Sempre lutamos pela justiça legal, nunca com as próprias mãos. De fato, não fazemos mais do que lhes dar todas as garantias e considerações que eles nunca tiveram com nossos filhos”, disse Almeida ao jornal argentino Página 12, repetindo as mesmas perguntas feitas ao ex-ditador pela organização formada pelos filhos de desaparecidos na ditadura.
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