Fotos de desaparecidos políticos em ato no STF durante julgamento sobre a Lei de Anistia, em 2010 (Foto: ©Folhapress) |
Pesquisa mostra que 74,8% de entrevistados desconhecem a lei. De acordo com entidades, o fato se deve aos resquícios do regime militar ainda presentes na mídia, além da falta de estudo crítico sobre o período nas escolas
São Paulo – A desinformação da sociedade quanto à Lei da Anistia (6.683/79) e outros assuntos relacionados à ditadura militar decorre da omissão da velha mídia e da falta de estudo crítico sobre a história do país, na visão de entidades de defesa da memória de desaparecidos e mortos e que investigam os crimes do regime militar (1964/1985). Há uma discussão no país sobre a possibilidade ou necessidade da revisão dessa para que possa haver a investigação e/ou a punição por crimes cometidos.
Segundo pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgada ontem (29), 74,8% de 3.796 pessoas entrevistadas não conhecem a lei, que concedeu perdão aos crimes políticos praticados na época. Entre as pessoas que declararam conhecer a legislação foi observada uma divisão de opinião quanto à necessidade de haver investigação e punição dos responsáveis.
A porcentagem sobe para 80,3% entre os entrevistados não escolarizados ou com ensino fundamental (incompleto ou completo), é de 74,8% entre os de nível médio (incompleto ou completo) e de 52,6% entre os de nível superior (incompleto ou completo) ou pós-graduação. O grau de desconhecimento está mais presente na região Nordeste: 57,7% dos entrevistados afirmaram que sequer haviam ouvido falar da Lei da Anistia. Essa foi a resposta de 33,4% dos entrevistados do Sudeste e de 40,2% dos entrevistados da região Sul.
Rose Nogueira, presidente da seção paulista do Grupo Tortura Nunca Mais, mostrou preocupação com a estatística. “Por isso batalhamos tanto pelo direito à memória, à verdade e à justiça. Sabemos que nas escolas não se ensina nada a respeito do período militar”, lamenta. No estudo da história do país, segundo ela, os fatos são contados como eventos isolados, enraizando a cultura da falta de senso crítico. “Nos livros de história, você ainda vê informações retrógradas, como a chamada Inconfidência de Tiradentes, que na verdade foi um herói, sendo passadas nas escolas. Muita gente ainda diz que não houve guerra nem luta no país. Claro que existiu resistência, e muita, principalmente na ditadura”, pontua Rose.
Para exemplificar esta cultura, ela citou o texto da Proclamação da República, de 1889, em que era prevista a consulta popular para a sua formalização. Somente em 1993, 104 anos depois, foi feito o plebiscito, pelo qual, aliás, uma parcela da população pediu a monarquia. “Claro que era minoria, mas a gente nem sabia que estava em uma república provisória no Brasil”, diz.
Carlos Gilberto Pereira, ex-presidente mas ainda integrante do Tortura Nunca Mais, avalia que a velha mídia também teve papel para a desinformação. “Houve repressão violenta, golpe de estado, e cometeram uma série da barbaridades. A questão da anistia, da forma que saiu na imprensa tradicional, está presa aos resquícios do regime militar. A pesquisa não está errada em nada, aliás, está certíssima”, frisa.
Considerada legítima pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em abril de 2010, a Lei nº 6.683 foi julgada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2007, quando ficou decidido que o Brasil é responsável pela violação e crimes à época da ditadura, independente do tempo em que foram cometidos.
Criméia de Almeida Telles, que dirige a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, considera que a “decisão ambígua” do STF espelha a omissão dos fatos. "A Lei de Anistia impede o julgamento de militares e policiais que participaram da repressão no período, mas os ministros do STF, que já extraditaram pessoas para ser julgadas em seus países, também deveriam poder garantir essa mesma decisão para os casos internos. “Até quando você ganha na Justiça, não vê o seu ganho. Esse tipo de justiça medrosa e acanhada não é o que quero consolidar. Quero uma democracia sem adjetivos, democracia por si só”, afirma Criméia. Ela diz que seu sonho é ver projetos, como o da Comissão da Verdade, servindo para consolidar a democracia.
Militante, Criméia foi guerrilheira nos anos 1970, na região do Araguaia, e foi presa e torturada pelo regime militar em 1972, enquanto estava grávida do líder da guerrilha, André Grabois. Segundo ela, durante todos estes anos só um grupo restrito falava sobre o problema da ditadura. “A verdade nunca fui muito bem vista pelo estado. Isso dificultou para a população entender sobre a lei da anistia, assim como existe dificuldade no entendimento de todas as leis”, diz. A mentalidade da sociedade se deve, de acordo com Criméia, à ideia disseminada durante os anos de que não se pode “abrir feridas” com as investigações sobre os desaparecidos e mortos da ditadura. “Falam como se estas feridas já não estivessem abertas. Tanto estão abertas que depois de 40 anos ainda estão por aí, purgando”, disse.
A Comissão da Verdade estadual foi instalada ontem (1º), na Assembleia Legislativa de São Paulo, dedicada ao ex-deputado Rubens Paiva, que teve mandato cassado pela ditadura e desde 1971 é desaparecido político. Em nível nacional, a Comissão foi sancionada pela presidenta Dilma Rousseff em novembro do ano passado, mas ainda não teve seus integrantes nomeados.
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