RIO - A Comissão Nacional da Verdade será instalada em abril, segundo a Secretaria dos Direitos Humanos, mas a polêmica já começou, como se viu nas reações dos militares da reserva nos últimos dias. Segundo a ministra Maria do Rosário, entrevistada pelo GLOBO, a comissão vai investigar "a responsabilidade dos militares e servidores públicos, civis e até empresários em organizações não governamentais que, à época, participaram de atos perversos da ditadura".
O GLOBO: O que representa o caso Rubens Paiva?MARIA DO ROSÁRIO: O caso Rubens Paiva é o símbolo maior de que a ditadura precisava destruir as instituições democráticas, destruindo as pessoas à frente das instituições. O Rubens Paiva fez da sua jornada parlamentar a defesa da democracia. Era um democrata que investigou tentativas de golpe contra a democracia no Brasil. E ele foi perseguido, foi retirado do seio da família de uma forma perversa. A ditadura precisava fechar também o Congresso,precisava calar as vozes. Fosse as dos estudantes, as dos trabalhadores, mas também, especialmente naquele momento, dos seus líderes, pelo exílio ou pela morte.
A senhora tem esperança de, na Comissão da Verdade, encontrar informações sobre esse e outros casos?
MARIA DO ROSÁRIO: Sim. A Comissão da Verdade tem como tarefa institucional estabelecer quais as circunstâncias em que as mortes, a tortura, a violência de Estado foi realizada no Brasil. Apurar a responsabilidade dos militares e servidores públicos da época, que teriam participado de atos perversos da ditadura, mas também dos próprios civis que participaram de estruturas não governamentais, empresariais, que participaram disso. Acredito que a sociedade brasileira - porque não é um ato de governo - vai contribuir para que esse quebra-cabeças seja redesenhado e formado. Creio que até agentes daquele período poderão contribuir, porque acredito nas pessoas, que elas possam reconhecer que a democracia é muito melhor para o Brasil.
Como será o método de trabalho. A comissão vai convocar comandantes militares?
MARIA DO ROSÁRIO: A Comissão da Verdade terá esse poder. Ela não está submetida aos ministros, à secretaria de Direitos Humanos ou ao governo de modo geral. Ela presta contas à nação, à presidenta da República, mas a prerrogativa dela é fazer o próprio plano de trabalho. Ainda que tenhamos um papel importante, a comissão terá total autonomia..
Tem prazo?
MARIA DO ROSÁRIO: Dois anos de trabalho da própria comissão. A ideia é termos uma resposta ainda no governo Dilma. Mas o prazo poderá ser ampliado.
E onde vocês querem chegar? Querem chegar às informações ou às punições?
MARIA DO ROSÁRIO: A comissão, como a lei a instituiu, quer chegar à verdade. É estranho dizer isso, porque, no mundo contemporâneo, poucas vezes a gente fala em verdade. Mas neste caso precisamos falar em verdade, porque precisamos desfazer na opinião pública brasileira, naa sociedade, a ideia de que existiam dois lados. Vamos investigar a violência de Estado contra a pessoa, o indivíduo, as organizações, fosse de estudantes, de líderes...Nenhuma sociedade dá autorização para o seu Estado armar-se contra si próprio. Essa é a ditadura.
Como a senhora vê o argumento de que a lei da anistia apagou tudo isso, e que reabrir os casos agora, seria destruir uma lei negociada com a sociedade?
MARIA DO ROSÁRIO: Apagou é uma palavra forte e indevida. No Brasil, os governos democráticos dos presidentes Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma cumpriram e cumprem uma papel de não deixar apagar. Foi o presidente Fernando Henrique quem instituiu a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos. Foi o presidente Lula quem deu continuidade ao trabalho e enviou ao Congresso Nacional o projeto de lei sobre a comissão da Verdade e da Memória e a lei geral de acesso à informação, que trabalhou uma mudança no regulamento sobre sigilo de informações no Brasil. E foi a presidenta Dilma quem sancionou. Então, é um ciclo de governos democráticos que resgatam para o Estado brasileiro atribuições democráticas para a Nação brasileira. Então, não houve esse apagamento de memória. Mas eu diria que não foram os governos que mantiveram a memória. Foram os familiares dos mortos e desaparecidos.
Por que, tantos governos democráticos depois, a gente não consegue ainda ter informações. Um exemplo é o caso de Rubens Paiva, que é tirado da família, como a senhora disse, e desaparece. E, 41 anos depois, não se tem informação do paradeiro dele. Por que os governos democráticos não conseguiram? Quem impede? Qual é a força que constrange a democracia brasileira e impede que se chegue à informação?
MARIA DO ROSÁRIO: Duas forças eu considero fundamentais. Uma que age por dentro das instituições, não apenas do governo, do poder executivo, mas do poder legislativo, e do próprio poder judiciário, com a intenção de produzir uma falsa possibilidade de que traríamos desequilíbrio à democracia e aos pactos feitos no Brasil se buscarmos a verdade. Então, há uma ameaça constante...Quem são esses? Os setores conservadores, ainda de blocos de direita, muito minoritários, mas com influência política. As instituições vivenciam essas contradições também. E essas mesmas forças políticas agem no imaginário da sociedade, na formação da opinião pública, que também vive contradições. Ora, defendendo, ora com medo. Nós aprovamos a existência da comissão da verdade com pouquíssimos votos contra na Câmara dos Deputados e com nenhum voto contrário no Senado Federal. Este é o pacto da democracia brasileira. Um pacto de diálogo entre poderes. Isso foi possível porque diminuímos a força desses setores que ficaram todo tempo constituindo instabilidade, com ameaças veladas e eles ainda estão presente em muitos lugares. Quando a gente vai para o Araguaia atuar, sentimos uma certa presença....Quando estamos diante dos familiares de desaparecidos, muitas vezes, mesmo diante da Vera Paiva, não é?
Por que ela não pôde falar na comissão?
MARIA DO ROSÁRIO: Nós aqui, na secretaria, queríamos que Vera falasse, mas o evento ficou muito enxuto, né? Claro que era muito mais importante que a Vera falasse ou que alguém que sofreu como familiar a morte ou o desaparecimento falasse. Era muito mais importante do que eu falasse...mas eu também não falei. Eu também não pude falar porque não havia tempo naquele ordenamento.Não é adequado pensarmos que houve um veto a Vera.
Então, não houve um veto?
MARIA DO ROSÁRIO: Não, não houve. Não houve, de forma alguma.
Toda a informação que a imprensa publicou na época foi de que os militares consideraram uma afronta. E, se a gente olha as imagens daquele evento, há momentos em que a linguagem corporal dos comandantes militares, dos três, é clara. Eles estavam ali contra a vontade deles... Como os militares são os que deteem a informação, ou detiveram a informação, esse veto, explícito ou não, a essa busca da informação, não será um problema?
MARIA DO ROSÁRIO: Além de observar a linguagem corporal das pessoas, observo a cena como um todo. É uma cena em que o Brasil que se sente positivamente vencedor diante daquela situação toda. Ou seja, tivemos uma vitória. Temos a Comissão da Verdade para ser instituída. Nós temos a possibilidade...A possibilidade, não, temos a nova lei sobre acesso a informações...Os setores que queriam diminuir o impacto e o valor dessa legislação também não conseguiram. Estamos vivendo um período de florescimento,..mais de cem comitês no Brasil por memória e verdade da sociedade civil estão instituídos. E as pessoas dialogam sobre isso com a maior abertura. Talvez um tema que estivesse diminuído, na sua força, hoje é parte da agenda dos meios de comunicação em geral. É a principal pauta de direitos humanos em termos de visibilidade do ano, para a agenda de direitos humanos.
Toda a vez que esse assunto volta, os militares informam que documentos não existem. Na sua opinião, documentos existem?
MARIA DO ROSÁRIO: Na minha opinião, os documentos existem
Mas existem na mão dos militares. Quando eles dizem oficialmente que todos foram destruídos, o que é isso?
MARIA DO ROSÁRIO: Olha, acho que são duas questões. Primeiro, que boa parte dos documentos, ao longos dos últimos anos, foram para o Arquivo Nacional. E o Arquivo Nacional tem um projeto chamado Memórias Reveladas, que agora, com as universidades, está fazendo um trabalho de organização, inclusive sobre o conhecimento de como pesquisar. Que códigos eram utilizados nos centros de repressão, nas polícias, na Casa da Morte para que possamos, em Petrópolis ou em São Paulo, em Porto Alegre ou em Belém do Pará reconhecê-los? Como as fichas de identificação eram preenchidas? .Os pesquisadores precisam ser formados também para conseguirem acessar esses códigos e desvelarem essa realidade....Esse trabalho o Arquivo Nacional, a secretaria de Direitos Humanos e as universidades brasileiras já estão fazendo para formar pesquisadores atuando com rigor histórico nestes arquivos. O Dops, em São Paulo, ou no Rio Grande do Sul, também teve seus acervos enviados para os arquivos públicos e isso é importantíssimo. Pernambuco está fazendo, boa parte já fez...Cada estado está realizando isso...Agora, existem arquivos com os militares? Eu não tenho como responder de forma tão objetiva, não tenho conhecimento formal sobre isso, como ministra. Mas eu acredito que podem haver.,..Com o conhecimento ou não dos chefes militares. É muito importante a parceria com o ministro Celso Amorim para que isso tudo seja trabalhado e trazido a público. É muito importante que as Forças Armadas de hoje não tenha uma identidade com as Forças Armadas do período repressivo. As Forças Armadas de hoje são constitucionais. São forças da democracia. Não é preciso que nenhum militar dos dias atuais tenham qualquer identidade com militar que torturou. É preciso que as Forças Armadas também continuem na superação daquele período, para que nenhum militar dos dias atuais sinta-se responsável por aquilo que ocorreu naquela época. Ainda que exista responsabilidade na instituição, aquilo é de um periodo de exceção. Hoje são forças constitucionais sob o comando maior da presidente Dilma, uma mulher que viveu o cárcere a tortura. Então, eu realmente procuro, no meu trabalho, no nosso trabalho, em direitos humanos no governo brasileiro não criar cisões com os setores militares. Mas criar possibilidades de uma nova cultura.
Se documentos foram destruídos, alguém deu ordem para que fossem. Pela natureza da estrutura militar, as pessoas obedecem ordens e as ordens são registradas. Então é preciso pelo menos saber "quem foi que mandou destruir e quando?" Essa pergunta será feita aos militares brasileiros?
MARIA DO ROSÁRIO: Esse entendimento é que temos na área de direitos humanos com o governo. Não nos parece possível que qualquer documento tenha sido destruído sem que exista registro sobre a destruição desse documento. Destruição de documentos públicos configura crime. Enfim, então é preciso que os servidores públicos civis ou militares respondam por isso, a menos que tenha sido definido por uma determinação. Quem estabeleceu essa determinação? Foi dentro da lei? Então, as pessoas teem que responder isto...O episódio, por exemplo, em Salvador, de destruição de documentos há alguns anos atrás chama a atenção, mas os arquivos privados - e este é um poder que ficou instituído para a Comissão da Verdade - também poderão ser acessados, requisitados, de acordo com a comissão e com o interesse para a pesquisa da comissão, para a investigação. A comissão poderá também convocar pessoas a depoimento.
Países da América Latina, como o Chile e a Argentina, chegaram mais rapidamente às informações, ao esclarecimento de casos de mortes e desaparecimentos e levaram generais aos tribunais. Por que o Brasil é tão lento?
MARIA DO ROSÁRIO: O Brasil tem uma legislação sobre anistia. Houve um pacto, uma transição pactuada? Houve. Isso desconstitui ou diminui a responsabilidade brasileira com direito à verdade e à memória? Em hipótese alguma. Os temas relacionados à anistia estão em debate no Supremo Tribunal Federal. Faz parte do ordenamento democrático brasileiro também. Qual é a origem da possibilidade de justiça no Brasil? É a memória e a verdade sobre esses fatos, um conhecimento a partir do qual a geração atual não esqueça. Não esteja a ela vetada a possibilidade de conhecer o que foi a tortura, as circunstâncias dessa tortura, as circunstâncias de destruição humana da tortura, que é um crime contra a humanidade e o desaparecimento forçado, que é um crime continuado, porque, na verdade, enquanto não tivermos uma resposta objetiva aos familiares dos mortos e desaparecidos, de onde estão os seus familiares, esse crime permanece acontecendo. Tenho esse entendimento, mas regra sobre o acesso à justiça está em debate no STF e que, enfim, diz respeito aos poderes constituídos. Até mesmo a identificação pública de estruturas governamentais ou não, de agentes públicos ou privados e pessoas que participaram dessa violência. A divulgação de que essas pessoas participaram de atos de tortura será uma possibilidade para a Comissão da Verdade.
A senhora vai considerar o seu trabalho bem sucedido se tiver informações novas ou se isso levar a sociedade a repensar o que deve ser feito em relação à punição de possíveis culpados?
MARIA DO ROSÁRIO: Nós temos os dois objetivos. Eu não falo eu punição, porque falo a partir da legislação brasileira e da orientação da presidenta Dilma, também, de que nós não devemos partir daí. As comissões da verdade foram as mais diversas no mundo. Nenhuma delas começou por punição. Mesmo na Argentina, no Chile ou no Uruguai, na África do Sul, ou no Peru, onde os povos fizeram sua caminhada, nenhum deles começou com as comissões da verdade pelo aspecto criminal. Todos começaram valorizando o aspecto de memória e de verdade. E alguns deles avançaram no sentido da responsabilização de caráter judicial. E outros, como a África do Sul, incentivaram o acordo e o sentido de perdão que a partir de Nelson Mandela e Desmond Tutu foi consolidado com uma perspectiva de encontro pós-apartheid na África do Sul. Então, cada nação, entre 40 nações do mundo que tiveram comissão da verdade, trilha seu próprio caminho. Se tivéssemos começado aqui falando de memória e verdade, já com o aspecto criminal, eu acredito que não teríamos chegado á aprovação da comissão da verdade. Então, fizemos um acordo de trabalho diante disso, mas a sociedade brasileira é dona dos seus destinos. E em plena vida democrática, a sociedade estará debatendo os caminhos futuros, principalmente debatendo hoje a legislação sobre anistia, que está plenamente em vigor, com o STF, quais os caminhos que ele pretende instituir como poder judiciário mais democrático. Eu considero que seremos vitoriosos não apenas como governo, como democracia e como nação, se conseguirmos responder aos familiares onde estão os nossos desaparecidos. Eu considero que seremos vitoriosos se conseguirmos ter uma nova geração que valorize a democracia, não como algo que foi dado, mas algo que foi conquistado e que tenha um encontro com a geração que lutou contra a ditadura, reconhecendo que defender a democracia é algo cotidiano. Em todos os sentidos, seja na escola, na universidade, em praça pública, nos meios de comunicação, no Congresso Nacional. A democracia é algo vivo, não pode estar parada.
Qual o seu entendimento sobre o argumento sempre usado, principalmente por militares na reserva, e portanto que falam mais livremente, que houve dois lados. E pela Comissão da Verdade o outro lado, dos contestadores do regime, não seria punido?, qual é?
MARIA DO ROSÁRIO: Eu de fato não considero a existência de dois lados. Nós estamos investigando e buscando refletir sobre a violência de Estado contra indivíduos e grupos. Agora, eu olho para os familiares dos mortos e desaparecidos, para as pessoas que nos trouxeram até aqui, que promoveram.a existência de mecanismos de direitos humanos e da democracia no Brasil. E elas pagaram uma conta altíssima, pessoalmente, muitos com a vida, colocando-se em risco, porque tinham um sonho, um desejo, um compromisso com a democracia brasileira. Eu tenho um respeito tão profundo por essas pessoas.E tenho o reconhecimento que, de fato, elas nos trouxeram até aqui. Então, acredito que é muito injusto quando, diante dessas pessoas, que foram torturadas, que perderam familiares, que viveram e vivem até hoje o desconhecimento do que ocorreu com as pessoas que amavam,se diz que elas deveriam pagar alguma coisa.Essas pessoas se dedicaram ao Brasil muito mais do que nós nos dedicamos hoje com o nosso trabalho. Elas dedicaram sua vida! Então, realmente acredito que é injusto quando se fala isto. Não há possibilidade de pensarmos em qualquer punição. Sei lá, mas acho que o fundamento de injustiça dentro da desigualdade de poder que uns e outros tinham. Eram as Forças Armadas do Brasil, o governo brasileiro, o poder do Estado contra alguns grupos de militantes, outros isoladamente, que exerceram o direito humano à desobediência civil diante de uma ditadura . A desobediência civil é um direito humano diante de uma ditadura! E eles fizeram isso.
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