Página infeliz da nossa história
“Somos o que fazemos. Mas somos, principalmente, o que fazemos para mudar o que somos”
(Eduardo Galeano)Chico Alencar*
Brasileiro não tem memória”, diz o senso comum. Entretanto, um povo só avança em civilização conhecendo sua própria história, caminho dialético de cruzes e luzes. Esquecer períodos dessa trajetória é postura obscurantista e perigosa: quem não se recorda do passado corre o risco de revivê-lo.
Os crimes de perseguição, tortura, assassinato e desaparecimento de presos políticos, cometidos pela ditadura civil-militar implantada com o golpe de 1964, foram hediondos. Ninguém pode ser conivente com eles. Quando se alega que também houve prática “terrorista” por parte daqueles que se insurgiram contra a ditadura, igualando-os aos torturadores, omite-se importante aspecto: enquanto o governo militar agia, sem legitimidade para tanto, sobre pessoas imobilizadas, os que ousavam resistir ao regime pagaram seus atos com prisão, sevícias cruéis, exílio ou morte. Já foram violentamente punidos, sem limites. Seus algozes, por outro lado, até ascenderam na hierarquia do serviço público ou no mundo empresarial!
Não há revanchismo: ninguém quer torturar torturadores, realizar prisões ilegais e negar direito de defesa, mas fazer valer o direito à memória coletiva e à justiça. Passado é o que passou e o que, sendo devidamente lido e relido, nos constitui. A máquina de terror montada pela ditadura, com o uso de instalações e recursos públicos, não pode ser “página infeliz” virada, arrancada ou lida às pressas. Nem “passagem desbotada na memória das nossas novas gerações”, como alerta a denúncia poética de Chico Buarque e Francis Hime.
A sociedade brasileira tem o direito irrenunciável de conhecer quem ordenou a tortura e torturou, quem montou a estratégia da violência oficial contra opositores, quem a financiou, quem praticou atos tão covardes que nem mesmo o regime, embora os tenha organizado “cientificamente” e exportado know how para ditaduras vizinhas, os assumiu.
A consciência democrática não compreenderia a adesão da oficialidade contemporânea a processos espúrios, que só desonraram seus estamentos. Que corporativismo seria aquele que defendesse como seu “patrimônio” práticas que atentaram contra os mais elementares direitos das pessoas? Ou que corroborasse, passadas três décadas, escandalosas mentiras palacianas?
O princípio humanista garante que as famílias que não tiveram sequer o direito de sepultar seus entes queridos, ou que viveram o drama indizível de sabê-los nas masmorras, sofrendo todo tipo de agressão, conheçam seus carrascos. Para usar, se desejarem, o direito de acioná-los judicialmente. Os protagonistas da repressão encapuzada devem ter a hombridade de reconhecer que praticaram atrocidades, caminhando assim para o que em direito se chama de “arrependimento eficaz”, como ocorreu na África do Sul.
A nação reverencia a luta dos que nos trouxeram a democracia, ainda que com suas limitações atuais, inclusive os jovens que pegaram em armas contra o governo de exceção, em inglória batalha. Os que resistiram ao arbítrio pela via institucional reconhecem a coragem e o sacrifício dessa geração. A chamada “transição pelo alto”, pactuada e negociada, aconteceu também porque alguns arriscaram suas próprias vidas para romper o círculo de ferro do regime militar.
A Comissão Parlamentar da Verdade, que já tarda, e suas similares nos Legislativos, devem atuar dentro deste viés humanista: com firmeza, serenidade e visão de processo histórico.
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