Material chega ao
público em livro e documentário do projeto Memórias da Resistência
Por Aray Nabuco
Uma casa abandonada em uma fazenda
em Jaborandi (SP), região de Ribeirão Preto, que era tida como mal assombrada
pelos cortadores de cana, acabou por revelar de fato muitos fantasmas do
passado. Cinco anos depois da descoberta por um cortador de cana e estudante de
história de documentos da ditadura militar, o material vai ganhando identidades
e recompondo a história no projeto Memórias da Resistência que, depois de
colocar na internet um site, chega também às livrarias e, até o início do ano
que vem, um documentário. O projeto é empreendido por um grupo de pesquisadores
do Instituto Práxis de Educação e Cultura (IPRA), de Franca, através de edital
Ponto de Mídias Livres, do Ministério da Cultura.
A fazenda pertencia ao ex-delegado
Tácito Pinheiro Machado, citado pelo Brasil Nunca Mais como repressor, e que além
de atuar em delegacias no interior paulista, dirigiu o Departamento de Ordem
Política e Social (Dops) e foi chefe de gabinete da Secretaria de Segurança
Pública. Machado morreu em 2005, aos 79 anos, e apesar de seu pedido para
queimar as fichas de perseguidos políticos, envelopes de correspondências
restritas, bilhetes e anotações e até um manual de ação contra 'subversivos', o
material ficou largado na casa. Em parte foi realmente dado um fim - os
envelopes estavam vazios, seu conteúdo já havia sido eliminado.
Descoberta
Foi uma associação de elementos
essa descoberta, diz o historiador Tito Flávio Bellini, que junto com o grupo
de pesquisadores trabalhou no material, limpando, separando em categorias,
analisando. A descoberta começou quando um grupo de cortadores de cana brincava
que a casa era mal assombrada. Um deles, Cleiton Oliveira (camisa verde na foto
nessa página), entrou e se deparou com a papelada esparramada nos cômodos
abandonados. Cleiton cursava História na Faculdades Integradas de Bebedouro
(Fafibe) e levou os papéis para um professor; teve o olhar crítico que outros
provavelmente não teriam, ressalta Bellini.
A descoberta demonstra, sobretudo,
que agentes da ditadura guardaram ou ainda guardam ou eliminaram documentos
importantes dos Anos de Chumbo. A descoberta fez com que a Comissão Nacional da
Verdade abrisse uma nova linha de investigação, solicitando documentos da época
a todas as delegacias. Depois de tornar pública a história de Jaborandi, ao
menos duas outras pessoas entregaram documentos que estavam guardados.
Livro e Documentário
Parte do material é reproduzido no
livro de mesmo nome do projeto, que está sendo lançado e chega às livrarias até
janeiro, segundo o historiador - já é possível adquiri-lo através da editora
Expressão Popular, selo Outras Expressões, ou em contato direto com os
pesquisadores, através do portal na internet, no www.memoriasdaresistencia.org.br .
Também para o início do ano planejam o lançamento do documentário, em fase de
finalização.
Além de Bellini, o livro é
organizado por Marco Antônio Escrivão e Pedro Russo, mas conta com textos de
vários autores, coletivos políticos e pesquisadores - Frei Betto, o coletivo
Aparecidos Políticos, o também coletivo Quem, Aretha Amorim Bellini, Caroline
Grassi, Clayton Romano, Inez Stampa, Kátia
Felipini, Leonardo Stockler, Maria Carolina Bissoto, Maurice
Politi, Paulo Abrão, Rafaela Leuchtemberger, Thaís Barreto.
Tito Bellini conversou com Caros
Amigos sobre a pesquisa e a importância do achado, cujos originais agora estão
no Arquivo Público do Estado de São Paulo.
CA - O que esses documentos
revelaram, já que eram inéditos?
Tito Bellini - Há dois
enfoques: o primeiro, a forma como eles foram descobertos, numa fazenda, área
rural de Jaborandi, e que pertencia a um delegado do Dops, em São Paulo.
Depois, fazendo pesquisas - a gente entregou a documentação ao Arquivo Público
do Estado de São Paulo -, a gente percebeu que essa foi a primeira vez que se
confirmou cabalmente a guarda indevida de documentos por agentes da repressão.
CA - Isso mostra que ainda
podem haver documentos nas mãos de aposentados, militares da reserva…?
TB - Sem dúvida. Depois que tornamos públicos esses documentos, o pessoal do Arquivo Público do Estado já conseguiu recuperar outros documentos. Teve uma viúva que entregou do marido, que morreu e era coronel; tem outro caso no Nordeste também.
TB - Sem dúvida. Depois que tornamos públicos esses documentos, o pessoal do Arquivo Público do Estado já conseguiu recuperar outros documentos. Teve uma viúva que entregou do marido, que morreu e era coronel; tem outro caso no Nordeste também.
Isso até abriu uma nova linha de
investigação para a Comissão Nacional da Verdade.
Esse é um dos enfoques. O outro
enfoque é especificamente sobre o material. Eu digitalizei 1.200 arquivos, mais
ou menos, e temos 110 fichas (de investigados pela ditadura); no montande de
fichas do Arquivo do Estado são poucas; eles têm mais de 20 mil e parece que
agora foram incorporados mais de 40 mil prontuários daquele arquivo encontrado
em Santos (fichas e prontuários de perseguidos, encontrados por acaso em março
de 2010 e já abertos ao público).
Agora, as fichas de Jaborandi são
únicas. Eles não tinham nenhuma, entre as 20 mil, desse modelo, que são da
delegacia especializada da ordem política; as que eles tinham é da delegacia
especializada da ordem social.
É uma ficha mesmo, de uns 15 por 10
centímetros de formato; na frente vem a tipificação, com nome, filiação,
endereço, profissão, data de nascimento, algumas com fotos, poucas; e algumas
informações sobre o fichado, se está já em algum processo e do que ele era
acusado.
Tem três fichas de mortos e
desaparecidos, inclusive, do Marcio Beck, que até hoje está desaparecido,
sabe-se que ele morreu por relatos, mas não há confirmação oficial, nem
localização do corpo; Lauriberto José Reyes, que morreu em confronto com a
polícia, e Rui Carlos Vieira Berbet.
CA - Essas fichas eram de
pessoas conhecidas em outras listagens de desaparecidos, como a do Brasil Nunca
Mais?
TB - Ah, acho que já sim; essas pessoas constavam em outras fichas da delegacia de ordem social também. Mas não sei te dizer porque o pessoal que acompanha um pouco aqui é do fórum de ex-presos políticos; eles até solicitaram isso para facilitar na entrada de pedidos de indenização; teve algumas pessoas que entraram em contato por email, teve um militante que mora no Paraguai. Então, não sei se todos constam, mas acho que sim na do Brasil Nunca Mais; mas não posso dizer categoricamente.
TB - Ah, acho que já sim; essas pessoas constavam em outras fichas da delegacia de ordem social também. Mas não sei te dizer porque o pessoal que acompanha um pouco aqui é do fórum de ex-presos políticos; eles até solicitaram isso para facilitar na entrada de pedidos de indenização; teve algumas pessoas que entraram em contato por email, teve um militante que mora no Paraguai. Então, não sei se todos constam, mas acho que sim na do Brasil Nunca Mais; mas não posso dizer categoricamente.
CA - Esses documentos já estão
com a Comissão da Verdade?
TB - Até onde a gente sabe,
não. Essa documentação foi descoberta em 2007, ficou na guarda do nosso
instituto, o Praxis, até 2009 uma parte, e uma outra parte ficou na faculdade
em Bebedouro, a Fafibe. Então, só em 2009, através de um militante político é
que deu prosseguimento e essa documentação foi encaminhada ao Arquivo Público
do Estado de São Paulo.
Então, os originais ficaram no
Arquivo Público, que não está ainda disponível para consulta. E nesse período
que ficou com a gente, fizemos o trabalho de digitalização; no livro, a
gente publica uma parte desses documentos; algumas fichas, um manual da
Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, chama "Subversão e
Contra-Subervição", onde tem umas pérolas de marxismo e leninismo lá que é
assustador o nível do maniqueísmo e do simples; atribui frase a Lênin que é de
Maquiavel, por exemplo (risos).
CA - Sim, mas revela o
trabalho ideológico da ditadura.
TB - Isso era declarado; nesse
manual fica evidente. Eles se colocavam como democratas; o que os democratas
deviam utilizar para impedir os comunistas, inclusive, de ascender ao poder até
por via eleitoral.
CA - E eles sugeriam alguma
ação específica?
TB - Tem as linhas de ação que
eles destacaram, que era necessário dar uma resposta à tática subversiva
comunista ou tática contra-revolucionária e realiza-se através das seguintes
vias de ação: via eleitoral, a defesa da independência e equilíbrio entre os
poderes, repressão a movimentos revolucionários de qualquer natureza.
E tem as estratégias: "Anular
os antagonismos, promovendo estabilidade política; ativar a doutrinação
democrática das massas; promover aglutinação das forças democráticas para a
luta contra o PC; isolar o Partido Comunista das massas"
Aí vem "Para isso: considerar
ilegais suas atividades e sua própria existência; agir com aparelho policial,
buscando a descoberta e a neutralização dos elementos comunistas que atuam na
clandestinidade e identificar e agastar os elementos comunistas dos aparelhos
político e administrativo nacional".
CA - É importante ver esse
arcabouço ideológico, que também legitimava as ações.
TB - Sim, e ali eles colocam
abertamente "doutrinação" e o curioso é que eles colocam "doutrinação
democrática", então, eles estavam fazendo tudo isso em nome da democracia.
CA - O delegado que era o dono
da fazenda, vocês chegaram a procurá-lo ou a parentes?
TB - Ele morreu em 2005, dois anos antes da descoberta dos documentos. Um repórter da Isto É conseguiu localizar o filho do delegado, inclusive é delegado em São José do Rio Preto, parece. Ele colocou um depoimento do filho na reportagem falando que o pai dizia que os documentos da ditadura, algns tinham que ser incinerados, desaparecer porque comprometeriam algumas pessoas que ainda estavam na política no período recente.
TB - Ele morreu em 2005, dois anos antes da descoberta dos documentos. Um repórter da Isto É conseguiu localizar o filho do delegado, inclusive é delegado em São José do Rio Preto, parece. Ele colocou um depoimento do filho na reportagem falando que o pai dizia que os documentos da ditadura, algns tinham que ser incinerados, desaparecer porque comprometeriam algumas pessoas que ainda estavam na política no período recente.
CA - E podem estar vivos...
TB - Com certeza ainda estão
vivos muitos deles. A gente tentou com uma filha, mas ficamos receosos de ir
atrás do filho, com medo dele colocar algum obstáculo ao andamento do projeto,
então, por isso a gente foi postergando, porque a gente está em trabalho de
finalização da produção do documentário do projeto Memórias da Resistência.
Via Caros Amigos
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