Por Valéria Said
No último 18 de novembro, a presidenta Dilma Rousseff sancionou a lei que cria a nossa Comissão da Verdade, cujo objetivo precípuo é dotar o país do mecanismo legal para investigar, descobrir, esclarecer e reconhecer os abusos cometidos no passado do país, ocorridos entre 1946 e 1988, dando voz às vítimas. Com isso, além de desvendar as responsabilidades no passado, a Comissão pretende colaborar na definição de uma nova política pública de transparência e de combate à impunidade, na relação entre o poder político, militar ou policial e a sociedade em geral. A primeira Comissão da Verdade que se conhece foi a que estabeleceu o governo de Uganda em 1974, do facínora Idi Amin Dada.
No caso brasileiro, o ditado ‘antes tarde do que nunca’ vale quanto pesa. Explico: das grandes ditaduras do Cone Sul, o Brasil é o último a investigar seus crimes cometidos pela ‘ditabranda’, tarefa já cumprida de forma exemplar na Argentina, Chile e Uruguai, países onde seus respectivos militares e torturadores envolvidos em abusos de Direitos Humanos estão sendo investigados e julgados e já cumprem penas proporcionais a seus agravos contra a humanidade, como esclarece o colega Luiz Cláudio Cunha, em recente artigo no Observatório da Imprensa. É dele também o exemplo eficiente da Comissão da Verdade, na Argentina: o general Jorge Rafael Videla, que iniciou a ditadura mais sangrenta do extremo sul do continente em 1976, hoje cumpre duas penas de prisão perpétua em Buenos Aires pelo envolvimento direto em dezenas de mortes e desaparecimentos.
Como sabemos, a Comissão não terá poder judicial, ou seja, capacidade de julgar e punir os agentes do Estado apontados por violações dos direitos humanos sendo, portanto, um órgão temporário de assessoramento a governos. Ao final das investigações - ou do prazo -, será produzindo um relatório através do qual se dará o reconhecimento público e oficial dos abusos cometidos, cujas informações apuradas o Ministério Público poderá utilizar para fazer denúncias e encaminhar à Justiça. A maioria das 39 comissões criadas nos quatro continentes que precederam a nossa tem duração entre seis meses a três anos, como informa a cartilha da Comissão da Verdade no Brasil, preparada pelo Núcleo de Preservação da Memória Política/São Paulo e chancelada por Priscilla Hayner, fundadora do Centro Internacional de Justiça de Transição e autora do livro que é considerado a ‘bíblia’ das Comissões da Verdade, Unspeakable truths (“As verdades das quais não se pode falar”).
No nosso caso, a Comissão terá exíguos 7 membros nomeados pela presidenta Rousseff, os quais terão ajuda de 14 servidores administrativos para escutar os sobreviventes e as famílias das vítimas de arbitrariedades e abusos aos direitos humanos cometidos entre 1946 (promulgação da Constituição pós-Estado Novo) e 1988 (promulgação da Constituição em vigor).
Mas por que nossa Comissão deverá investigar também os governos civis dos presidentes Dutra, JK, Jânio, João Goulart e Sarney? Porque essa foi uma das hipócritas exigências dos militares para desviar o verdadeiro foco da Comissão da Verdade – os 21 anos da violenta repressão política entre 1964 a 1985 que, 25 anos depois, ainda se recusa a nos informar onde estão enterrados nossos mortos (para tomar emprestado título do livro do jornalista Aluízio Palmar, Onde foi que vocês enterraram nossos mortos?, Curitiba: Travessa dos Editores, 2007). Esse foi o ‘jeitinho brasileiro’ para que a Comissão da Verdade fosse sancionada: ‘fingir’ que vai investigar todos os abusos aos Direitos Humanos cometidos em 8,5 milhões de km² ao longo de 42 anos, no prazo de 24 meses. Então, tá.
Em tempo: no mês de dezembro, esgota-se o prazo para o Brasil se defender da vergonhosa condenação sofrida há um ano na Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) por não ter investigado os crimes de detenção arbitrária, tortura, execução e desaparecimento de 62 militantes do PCdoB, combatidos pelo Exército na guerrilha do Araguaia, entre 1972 e 1975. Nesse contexto de passar o Brasil a limpo, a exemplo das sanções das leis que criam a Comissão da Verdade e o Acesso à Informação, já passou da hora também da aprovação de uma nova legislação para revogar -ou declará-la inaplicável- a Lei 6.683/79, a nefasta, inapta e inepta Lei da Anistia, que os militares se concederam no governo Figueiredo, como outro ‘jeitinho brasileiro’ para se protegerem covardemente dos crimes de abusos e violações de direitos humanos que cometeram durante os anos de arbitrariedade e violência do regime militar que participaram.
Aliás, a máxima do ‘jeitinho brasileiro’ foi a hermenêutica que o Supremo Tribunal Federal (STF) deu a essa questão: em abril de 2010, os ministros daquela Corte julgaram válida a interpretação segundo a qual foram anistiados os dois lados: as vítimas de crimes de violações de direitos humanos e os agentes de Estado responsáveis por esses crimes. Ora, como dar a mesma medida de “perdão” tanto para àqueles que enfrentaram o regime de exceção e que, em virtude disso, foram perseguidos, torturados e mortos; daqueles que, em nome do mesmo regime, torturaram, assassinaram e violaram direitos humanos? Desse jeito, não há Comissão da Verdade que resista! É preciso dar um jeito nisso, meu amigo, como diria a velha guarda de Erasmo Carlos.
*Valéria Said é Jornalista e Prof.ª de Ética e Deontologia do Jornalismo
Nenhum comentário:
Postar um comentário