Prisão de Gregório Bezerra |
Anita Leocadia Prestes
A Revista de História publicou, em março de 2013, um dossiê sobre os militantes da “esquerda armada” que, de diferentes formas, defenderam o recurso às armas na luta contra a ditadura instaurada no Brasil a partir do golpe civil-militar de abril de 1964. Na realidade, estamos diante da desqualificação dos jovens que lutaram contra a ditadura pela RHBN.
O caráter tendencioso desse dossiê já se evidencia na apresentação da capa da revista através da citação de uma frase infeliz de Carlos Marighella -“toda revolução tem sua linha burra”- e da afirmação de que tanto os golpistas de 64 quanto os militantes de esquerda, que
lutaram contra a ditadura, com “sonhos e planos radicalmente distintos”, não teriam ideais democráticos. Dessa maneira, ambos os lados em confronto a partir do golpe são postos no mesmo pé de igualdade, o que contribui para a difusão de uma imagem negativa daqueles brasileiros que, de uma forma ou de outra, resistiram e lutaram contra o regime ditatorial militar que reprimiu com inusitada violência toda e qualquer manifestação contrária aos desígnios dos donos do poder.
lutaram contra a ditadura, com “sonhos e planos radicalmente distintos”, não teriam ideais democráticos. Dessa maneira, ambos os lados em confronto a partir do golpe são postos no mesmo pé de igualdade, o que contribui para a difusão de uma imagem negativa daqueles brasileiros que, de uma forma ou de outra, resistiram e lutaram contra o regime ditatorial militar que reprimiu com inusitada violência toda e qualquer manifestação contrária aos desígnios dos donos do poder.
No referido dossiê, com a exceção talvez do artigo assinado por Edson Teles, não há uma análise substantiva do contexto histórico, - econômico, social e político - da época, nem da situação internacional então existente. Não é apresentado um exame da ofensiva então em curso de parte das potências imperialistas – em primeiro lugar dos EUA – contra os movimentos populares e revolucionários no continente latino-americano, a partir da vitória da Revolução Cubana em 1959. Falta uma apreciação das condições sócio-políticas do Brasil naqueles “anos de chumbo”, que poderia revelar a inviabilidade do recurso às armas na luta contra a ditadura no referido período, uma vez que inexistiam no país forças sociais e políticas organizadas e conscientes, preparadas não só para apoiar, mas também participar de um processo de rebelião armada com vistas à derrubada da ditadura.
Na ausência de tais condições, o recurso à luta armada – uma forma de luta possível e justificável quando os donos de poder recorrem à repressão contra as forças progressistas e revolucionárias – se transformou numa aventura perigosa, independentemente das intenções dos seus adeptos, pois contribuiu para o retrocesso e o esfacelamento do movimento popular. Com o golpe de 1964, a derrota dos setores democráticos e progressistas no Brasil foi de tal ordem, que se tornara necessário recuar para reorganizar o movimento popular e conduzi-lo à luta contra a ditadura.
O PCB (Partido Comunista Brasileiro) foi quem melhor compreendeu a necessidade de adotar uma política de mobilização das amplas massas do povo brasileiro para acumular forças na luta pela derrota da ditadura, aproveitando todas as possibilidades legais existentes, inclusive a participação nas eleições. Luiz Carlos Prestes, o secretário-geral do PCB, liderou o combate contra a aventura “esquerdista”, ao mesmo tempo em que empreendia a luta interna contra as tendências reformistas presentes na direção desse partido, conforme mostro, com base em documentos, em meu último livro - Luiz Carlos Prestes: o combate por um partido revolucionário (1958-1990).
Prestes não teve êxito no esforço empreendido para transformar o PCB em um partido revolucionário, capacitado a conduzir a luta dos trabalhadores brasileiros pelo socialismo, o que o levou a romper com sua direção em 1980. Nessa ocasião, divulgou um documento intitulado Carta aos comunistas, em que fazia séria autocrítica dos erros cometidos pelo partido, reconhecendo que as tendências reformistas presentes no PCB haviam contribuído para que muitos jovens ingressassem na aventura da luta armada, sem levar em conta sua inviabilidade nas condições então existentes no país. Tais tendências reformistas contribuíram também para que o processo de transição do regime ditatorial para a democracia fosse limitado, uma vez que encabeçado por lideranças da burguesia liberal, como Ulisses Guimarães e Tancredo Neves. Circunstâncias estas que marcaram profundamente os resultados alcançados: anistia para os torturadores; eleições indiretas para a presidência em 1985; aprovação, em 1988, de um texto constitucional, em que, segundo o seu artigo 142, as Forças Armadas estão acima dos três poderes da República, constituindo um “poder militar”, na precisa definição de Prestes.
A desqualificação dos revolucionários
O caráter tendencioso do dossiê é confirmado pelo título que lhe foi atribuído – “Ideais de chumbo”, uma aposta na desqualificação daqueles jovens, homens e mulheres, que se levantaram contra a ditadura e, em muitos casos, foram barbaramente torturados e assassinados, morrendo pelos ideais, que não eram “de chumbo”, mas de democracia e justiça social em nossa terra.
Tal desqualificação dos revolucionários é particularmente visível no artigo de Apolo Heringer Lisboa, cujo título – “Cavaleiros sem esperança” – expressa com clareza a intenção do autor de denegrir a imagem de Luiz Carlos Prestes, proclamado Cavaleiro da Esperança por amplos setores da opinião pública brasileira, desde o final dos anos 1920. Ao mesmo tempo, evidencia-se o intuito de denegrir a imagem de todos aqueles que, de uma forma ou de outra, denunciaram a repressão do regime implantado com o golpe de 1964 e se rebelaram contra a ditadura.
Estamos aqui diante de um texto repleto de tolices e inverdades. Seu autor afirma, por exemplo, que o tenentismo “denunciava os métodos servis nas relações de trabalho, herdados da escravidão”, tese que não corresponde nem ao ideário nem à prática desse movimento. Assevera que Prestes pretendera, em 1935, “criar uma República Comunista” no Brasil, alegação absurda, desmentida pela consulta às fontes documentais da época. Declara que o PCB teria conquistado a legalidade no segundo governo Vargas, durando até 1964, o que não corresponde à realidade, pois, cassado seu registro em 1947, o partido não conseguiu ser legalizado sequer no Governo João Goulart. Outras inverdades poderiam ser apontadas no referido artigo, todas revelando o intuito deplorável e retrógrado de desmerecer e atacar as esquerdas no Brasil e na arena mundial.
Da mesma maneira, temos a repetição de velhas calúnias, segundo as quais “Prestes e o PCB subordinavam-se às decisões teóricas e práticas do comitê central do Partido Comunista da União Soviética”, e os ataques à União Soviética, ignorando e negando as importantes conquistas econômicas e sociais alcançadas na primeira experiência de construção do socialismo, não obstante os problemas e os erros que tiveram lugar nesse difícil processo de construção de uma nova sociedade, livre da exploração do homem pelo homem.
O autor desse artigo, de acordo com o espírito do referido dossiê, transmite aos leitores da RHBN a mensagem derrotista de quem capitulou diante das injustiças presentes na sociedade capitalista. Um discurso de desmobilização é veiculado, ao afirmar que “hoje predomina entre os remanescentes dessa geração guerrilheira a idéia fatalista de que nenhuma alternativa era possível”.
Dessa maneira, procura-se convencer os jovens de hoje de que os militantes da “esquerda armada”, por terem sido derrotados na luta contra a ditadura, deveriam “enrolar bandeira” definitivamente, desistindo de qualquer questionamento da ordem vigente. É ignorado um grande ensinamento histórico, lembrado, ainda em 1887, pelo destacado pensador e revolucionário inglês William Morris: “(...) sem as derrotas do passado, não teríamos jamais a menor esperança numa vitória final”.
Dessa maneira, procura-se convencer os jovens de hoje de que os militantes da “esquerda armada”, por terem sido derrotados na luta contra a ditadura, deveriam “enrolar bandeira” definitivamente, desistindo de qualquer questionamento da ordem vigente. É ignorado um grande ensinamento histórico, lembrado, ainda em 1887, pelo destacado pensador e revolucionário inglês William Morris: “(...) sem as derrotas do passado, não teríamos jamais a menor esperança numa vitória final”.
Não podemos considerar casual que, do mesmo n° 90 da RHBN, conste uma longa entrevista com o historiador francês Jean-Freançois Sirinelli, sintomaticamente intitulada “Sem mocinhos nem bandidos”. O entrevistado declara que o seu trabalho “é fazer uma restituição de complexidades” e, segundo ele, “a militância é o contrário: há o bom e o mau”, ou seja, o militante revolucionário não pode ser um bom historiador. Segundo Sirinelli, “quando você tem convicções fortes (...) você tem uma visão do mundo maniqueísta, moldada de acordo com elas”. Tal caricatura da atividade revolucionária, reduzida a um simples maniqueísmo, é difundida com freqüência pelos “intelectuais orgânicos” (segundo Antônio Gramsci) a serviço dos setores dominantes, pois contribui para a desqualificação de todos aqueles que participaram ou participam da luta por transformações profundas na sociedade capitalista.
Segundo Sirinelli, o marxismo seria inaceitável para o historiador, porque “explica que há um sentido na história: a luta de classes”. O entrevistado da RHBN não aceita a explicação histórica baseada nos conflitos de classe presentes na sociedade capitalista, não concorda com a concepção de que os fenômenos sociais possam ser examinados à luz do embate entre dominados e dominantes. Ao rejeitar tais explicações, adota uma postura aparentemente objetiva e imparcial, mas que, na realidade contribui para justificar “teoricamente” as concepções presentes no dossiê “Ideais de chumbo”, ou seja, a desqualificação dos militantes que lutaram e morreram por ideais que não eram “de chumbo”, mas de democracia e justiça social.
Anita Leocadia Prestes é doutora em História Social pela UFF, professora do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes.
Via Revista de História .com.br
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