Ao contrário do que pensam alguns generais de pijama sócios do Clube Militar, ansiosos por assinar manifestos contra decisões voltadas a esclarecer partes obscuras da história recente no Brasil, comissão da verdade não é jabuticaba. Não existe só no Brasil, nem foi inventada por algum dragão da maldade tupiniquim com espírito revanchista.
Comissões da verdade já foram realizadas em cerca de 40 países, sempre voltadas a jogar luz sobre um período sombrio do passado, quando abusos foram cometidos e camuflados. Não se fazem com espírito vingativo, e sim com o objetivo de arejar a memória nacional, para evitar esquecimento e distorção, que impedem os cidadãos de aprender as lições de sua própria história.
Algumas dessas comissões se tornaram mais conhecidas dos brasileiros, como as da Argentina e do Chile, talvez porque os abusos em discussão nesses países vizinhos fossem parecidos com os nossos: militares no comando de ditaduras direitistas e repressivas que apelaram para a brutalidade na repressão a alguns grupos que se opunham ao governo.
Como de hábito em situações desse tipo, opositores moderados acabaram vítimas de prisões arbitrárias, tortura e assassinato (Vladimir Herzog é um bom exemplo) tanto quanto militantes que tomaram em armas (Lamarca e Mariguela) contra o regime.
Outros latino-americanos também tiveram comissões importantes, como a Guatemala, que examinou as atrocidades dos militares contra a população, inclusive os índios maias, em nome de uma suposta guerra contra a subversão comunista. Mesma situação no vizinho El Salvador, que também passou por um período de forte repressão contra ativistas armados e civis encontrados pelo caminho de militares obcecados em caçar comunistas.
Em ambos os casos, acordos posteriores levaram ex-membros de organizações guerrilheiras a ocupar postos de vários níveis no governo. E a busca de justiça permitiu recentemente abrir processo na Guatemala contra um general (Rios Montt) acusado de cometer atrocidades nos anos 80, e deu vitória ao governo de El Salvador no pedido de extradição de um ex-ministro da Defesa, Vides Casanova, exilado nos Estados Unidos.
A África do Sul constitui outro exemplo recente de um esforço público e bem sucedido para tirar das sombras uma fase sofrida na história do país. Ao fim de quase meio século do racismo oficial conhecido como apartheid, o novo regime que chegou ao poder nos anos 90 com Nelson Mandela optou por não ignorar o passado, mas expô-lo publicamente à cidadania, por meio de uma Comissão da Verdade e Reconciliação, que foi comandada pelo respeitado reverendo anglicano Desmond Tutu.
Os sul-africanos ouviram publicamente centenas de depoimentos, trazendo os fatos à luz do dia, para que não permanecessem apenas como lembranças doloridas de alguns injustiçados que tinham sido calados à força. Vítimas e acusados de cometer abusos se confrontaram em audiências abertas, o que rendeu uma espécie de catarse nacional.
Pesquisas de opinião realizadas ao final do processo mostraram apoio dos sul-africanos de variados matizes políticos àquele trabalho de depuração da história em esclarecimentos de dramas pessoais. Houve casos de arrependimento público, pedidos de desculpas e também punição formal. A comissão em si não tinha poderes judiciais para processar ninguém, mas o ministério público regular podia tomar iniciativas nesta área e o fez.
Não houve revanchismo nem perseguições vingativas. Buscou-se a verdade, sem jogar os fatos para baixo do tapete. Houve justiça para crimes ostensivos e houve também perdão. Mas não se permitiu que houvesse esquecimento.
Na experiência de lidar com aspectos sombrios da história, poucos fizeram um trabalho mais profundo do que os alemães, frente a seu período nazista. Desde o julgamento de Nuremberg e até hoje, os alemães não escondem aquele passado terrível em nome das boas relações no futuro ou do bom entendimento na sociedade.
O tribunal não apenas puniu os dirigentes nazistas, mas permitiu expor publicamente os crimes cometidos por eles, para que a história não se apagasse por falta de memória. Ou que futuras gerações pudessem dizer que barbarismos daquele tipo nunca poderiam ter ocorrido num país que produziu de Beethoven a Goethe, de Marx a Kant. Serviu para lembrar que dali também sugiram Hitler, Goebbels e Eichman.
O mesmo espírito de encarar o passado trágico não se aplica aos japoneses, que até hoje se recusam a discutir os abusos cometidos por suas tropas antes e durante a Segunda Guerra Mundial, e até expurgam dos livros didáticos os fatos incômodos da época. Irritam ainda mais os vizinhos de países invadidos na época, quando prestam homenagens oficiais aos soldados nipônicos da Segunda Guerra.
A Espanha enfrenta dificuldades até hoje com a ditadura do General Franco, e a forte reação da direita ainda admiradora do generalíssimo se revelou nos ataques ao juiz Baltazar Garzón, que tentou investigar o período franquista e acabou sendo afastado do cargo de procurador que lhe deu fama mundial na perseguição a crimes contra a humanidade.
Outros refratários a examinar a própria história são os russos, que mesmo após a queda do comunismo, resistem a discutir o período stalinista. Nem surpreende, quando se considerava que o todo-poderoso ex-espião KGB Vladimir Putin considera o fim da União Soviética “uma grande tragédia”.
Os franceses levaram muito tempo para se sentir confortáveis com a discussão do colaboracionismo durante a ocupação nazista (até filmes lidando com o assunto, como Lacombe Lucien e Le Chagrin et la Pitié sofreram boicote por muito tempo) bem como as práticas de tortura cometidas por seus soldados contra os rebeldes argelinos que lutavam por independência, nos anos 50 e 60. Durante muito tempo a discussão desses assuntos se passou à sombra, para não melindrar pessoas ainda vivas.
Mas os franceses acabaram confrontando os fatos, o que ainda não é o caso dos turcos em relação ao massacre de armênios em 1915, assunto até hoje politicamente sensível na Turquia, capaz de gerar até prisão.
O mesmo se dá em Israel quando se trata dos ataques à população palestina durante a fundação do estado judeu, em 1948. Uma lei recente do Knesset proíbe aos árabes dentro de Israel comemorar aquele período que chamam de nakba ou catástrofe.
A história não-esclarecida ganha os contornos e as versões de quem a escreve, quase sempre os vencedores. Comissões da verdade exercem seu papel depurador em várias partes do mundo, porque as sociedades aprenderam que esconder a própria história não é saudável nem decente.
O Brasil nunca examinou de maneira oficial o período ditatorial de Getúlio Vargas, quando proliferaram simpatias nazistas e fascistas entre muitos líderes civis e militares. Em meio ao silêncio, alguns deles ressuscitaram no regime militar de 1964-85, quando realimentaram o pensamento reacionário, conservador e elitista de que só eles sabiam o que era melhor para o povo. Usam isso como alavanca do movimento que depôs o governo civil eleito.
Um dos primeiros administradores da Escola Superior de Guerra, nos anos 50, tenente-coronel Afonso Henrique de Miranda Corrêa, fez estágio na Gestapo de Hitler. Um dos alunos da ESG nessa década foi o general Golbery do Couto e Silva, envolvido até os cabelos na ditadura militar pós-64. A história dos 30 anos anteriores não foi examinada, parecia esquecida.
No Brasil do regime militar, as autoridades cometeram crimes contra indivíduos, a fim de proteger um estado de segurança nacional em luta contra uma suposta ameaça comunista que, segundo os ideólogos de plantão, estava próxima de tomar o poder. Assim, os defensores do estado de exceção justificavam suas ações arbitrárias, como uma espécie de “guerra” em andamento.
No entanto, como se viu com o grupo Baader-Meinhoff na Alemanha, as Brigadas Vermelhas na Itália, os Weathermen nos Estados Unidos ou o IRA-Exército Republicano Irlandês no Reino Unido, pequenos grupos de guerrilheiros armados e violentos podem ser contidos por um estado democrático que aplica as leis, sem tortura ou assassinatos, sem censura à imprensa.
Muitos militantes contra a ditadura militar brasileira, quer pegassem em armas ou não, foram punidos com tortura, alguns desapareceram nas florestas do Araguaia, outros morreram nas mãos dos órgãos de repressão. Se de fato havia uma guerra, só um lado sofreu perseguição política, perda de emprego, prisão, tortura ou exílio.
Quando os tais generais de manifesto dizem que a anistia de 1979 exige dar o mesmo tratamento aos dois lados, pode-se pedir a eles que aproveitem a comissão da verdade para apontarem, do lado da oposição, quem praticou tortura. Se acharem, podem punir. Vai ser difícil encontrar. Já do outro lado...
Silio Boccanera
Comissões da verdade já foram realizadas em cerca de 40 países, sempre voltadas a jogar luz sobre um período sombrio do passado, quando abusos foram cometidos e camuflados. Não se fazem com espírito vingativo, e sim com o objetivo de arejar a memória nacional, para evitar esquecimento e distorção, que impedem os cidadãos de aprender as lições de sua própria história.
Algumas dessas comissões se tornaram mais conhecidas dos brasileiros, como as da Argentina e do Chile, talvez porque os abusos em discussão nesses países vizinhos fossem parecidos com os nossos: militares no comando de ditaduras direitistas e repressivas que apelaram para a brutalidade na repressão a alguns grupos que se opunham ao governo.
Como de hábito em situações desse tipo, opositores moderados acabaram vítimas de prisões arbitrárias, tortura e assassinato (Vladimir Herzog é um bom exemplo) tanto quanto militantes que tomaram em armas (Lamarca e Mariguela) contra o regime.
Outros latino-americanos também tiveram comissões importantes, como a Guatemala, que examinou as atrocidades dos militares contra a população, inclusive os índios maias, em nome de uma suposta guerra contra a subversão comunista. Mesma situação no vizinho El Salvador, que também passou por um período de forte repressão contra ativistas armados e civis encontrados pelo caminho de militares obcecados em caçar comunistas.
Em ambos os casos, acordos posteriores levaram ex-membros de organizações guerrilheiras a ocupar postos de vários níveis no governo. E a busca de justiça permitiu recentemente abrir processo na Guatemala contra um general (Rios Montt) acusado de cometer atrocidades nos anos 80, e deu vitória ao governo de El Salvador no pedido de extradição de um ex-ministro da Defesa, Vides Casanova, exilado nos Estados Unidos.
A África do Sul constitui outro exemplo recente de um esforço público e bem sucedido para tirar das sombras uma fase sofrida na história do país. Ao fim de quase meio século do racismo oficial conhecido como apartheid, o novo regime que chegou ao poder nos anos 90 com Nelson Mandela optou por não ignorar o passado, mas expô-lo publicamente à cidadania, por meio de uma Comissão da Verdade e Reconciliação, que foi comandada pelo respeitado reverendo anglicano Desmond Tutu.
Os sul-africanos ouviram publicamente centenas de depoimentos, trazendo os fatos à luz do dia, para que não permanecessem apenas como lembranças doloridas de alguns injustiçados que tinham sido calados à força. Vítimas e acusados de cometer abusos se confrontaram em audiências abertas, o que rendeu uma espécie de catarse nacional.
Pesquisas de opinião realizadas ao final do processo mostraram apoio dos sul-africanos de variados matizes políticos àquele trabalho de depuração da história em esclarecimentos de dramas pessoais. Houve casos de arrependimento público, pedidos de desculpas e também punição formal. A comissão em si não tinha poderes judiciais para processar ninguém, mas o ministério público regular podia tomar iniciativas nesta área e o fez.
Não houve revanchismo nem perseguições vingativas. Buscou-se a verdade, sem jogar os fatos para baixo do tapete. Houve justiça para crimes ostensivos e houve também perdão. Mas não se permitiu que houvesse esquecimento.
Na experiência de lidar com aspectos sombrios da história, poucos fizeram um trabalho mais profundo do que os alemães, frente a seu período nazista. Desde o julgamento de Nuremberg e até hoje, os alemães não escondem aquele passado terrível em nome das boas relações no futuro ou do bom entendimento na sociedade.
O tribunal não apenas puniu os dirigentes nazistas, mas permitiu expor publicamente os crimes cometidos por eles, para que a história não se apagasse por falta de memória. Ou que futuras gerações pudessem dizer que barbarismos daquele tipo nunca poderiam ter ocorrido num país que produziu de Beethoven a Goethe, de Marx a Kant. Serviu para lembrar que dali também sugiram Hitler, Goebbels e Eichman.
O mesmo espírito de encarar o passado trágico não se aplica aos japoneses, que até hoje se recusam a discutir os abusos cometidos por suas tropas antes e durante a Segunda Guerra Mundial, e até expurgam dos livros didáticos os fatos incômodos da época. Irritam ainda mais os vizinhos de países invadidos na época, quando prestam homenagens oficiais aos soldados nipônicos da Segunda Guerra.
A Espanha enfrenta dificuldades até hoje com a ditadura do General Franco, e a forte reação da direita ainda admiradora do generalíssimo se revelou nos ataques ao juiz Baltazar Garzón, que tentou investigar o período franquista e acabou sendo afastado do cargo de procurador que lhe deu fama mundial na perseguição a crimes contra a humanidade.
Outros refratários a examinar a própria história são os russos, que mesmo após a queda do comunismo, resistem a discutir o período stalinista. Nem surpreende, quando se considerava que o todo-poderoso ex-espião KGB Vladimir Putin considera o fim da União Soviética “uma grande tragédia”.
Os franceses levaram muito tempo para se sentir confortáveis com a discussão do colaboracionismo durante a ocupação nazista (até filmes lidando com o assunto, como Lacombe Lucien e Le Chagrin et la Pitié sofreram boicote por muito tempo) bem como as práticas de tortura cometidas por seus soldados contra os rebeldes argelinos que lutavam por independência, nos anos 50 e 60. Durante muito tempo a discussão desses assuntos se passou à sombra, para não melindrar pessoas ainda vivas.
Mas os franceses acabaram confrontando os fatos, o que ainda não é o caso dos turcos em relação ao massacre de armênios em 1915, assunto até hoje politicamente sensível na Turquia, capaz de gerar até prisão.
O mesmo se dá em Israel quando se trata dos ataques à população palestina durante a fundação do estado judeu, em 1948. Uma lei recente do Knesset proíbe aos árabes dentro de Israel comemorar aquele período que chamam de nakba ou catástrofe.
A história não-esclarecida ganha os contornos e as versões de quem a escreve, quase sempre os vencedores. Comissões da verdade exercem seu papel depurador em várias partes do mundo, porque as sociedades aprenderam que esconder a própria história não é saudável nem decente.
O Brasil nunca examinou de maneira oficial o período ditatorial de Getúlio Vargas, quando proliferaram simpatias nazistas e fascistas entre muitos líderes civis e militares. Em meio ao silêncio, alguns deles ressuscitaram no regime militar de 1964-85, quando realimentaram o pensamento reacionário, conservador e elitista de que só eles sabiam o que era melhor para o povo. Usam isso como alavanca do movimento que depôs o governo civil eleito.
Um dos primeiros administradores da Escola Superior de Guerra, nos anos 50, tenente-coronel Afonso Henrique de Miranda Corrêa, fez estágio na Gestapo de Hitler. Um dos alunos da ESG nessa década foi o general Golbery do Couto e Silva, envolvido até os cabelos na ditadura militar pós-64. A história dos 30 anos anteriores não foi examinada, parecia esquecida.
No Brasil do regime militar, as autoridades cometeram crimes contra indivíduos, a fim de proteger um estado de segurança nacional em luta contra uma suposta ameaça comunista que, segundo os ideólogos de plantão, estava próxima de tomar o poder. Assim, os defensores do estado de exceção justificavam suas ações arbitrárias, como uma espécie de “guerra” em andamento.
No entanto, como se viu com o grupo Baader-Meinhoff na Alemanha, as Brigadas Vermelhas na Itália, os Weathermen nos Estados Unidos ou o IRA-Exército Republicano Irlandês no Reino Unido, pequenos grupos de guerrilheiros armados e violentos podem ser contidos por um estado democrático que aplica as leis, sem tortura ou assassinatos, sem censura à imprensa.
Muitos militantes contra a ditadura militar brasileira, quer pegassem em armas ou não, foram punidos com tortura, alguns desapareceram nas florestas do Araguaia, outros morreram nas mãos dos órgãos de repressão. Se de fato havia uma guerra, só um lado sofreu perseguição política, perda de emprego, prisão, tortura ou exílio.
Quando os tais generais de manifesto dizem que a anistia de 1979 exige dar o mesmo tratamento aos dois lados, pode-se pedir a eles que aproveitem a comissão da verdade para apontarem, do lado da oposição, quem praticou tortura. Se acharem, podem punir. Vai ser difícil encontrar. Já do outro lado...
Silio Boccanera
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